domingo, 26 de setembro de 2010

Guia de tresleitura

No mês de setembro, o caso mais exemplar de charlatanismo jornalístico que encontrei foi no blog da The Economist. Leiam o texto do "M.S." aqui e o artigo do Dinesh D'Souza que gerou o comentário aqui. Como geralmente faço nessas ocasiões, li, por cortesia, a resposta antes de ler o artigo original. Assim eu deixo que o autor da resposta me mostre ele mesmo quais são os trechos do artigo original que ele considera dignos de serem citados sem que a minha leitura interfira no processo. Esse exercício me permite desconfiar que muita gente escreve respostas na esperança de que os leitores, já convencidos pela aparente razoabilidade da resposta, sintam-se desobrigados de ler o artigo original. De fato, na seção de comentários do blog da Economist há várias invectivas contra a simples necessidade de ler textos de 'alguém' como o D'Souza.

Logo no primeiro parágrafo, o M.S. conclui que o arrazoado de D'Souza não faz o menor sentido e cita uma conclusão a que este chega no vigésimo nono parágrafo de seu texto: If Obama shares his father's anticolonial crusade, that would explain why he wants people who are already paying close to 50% of their income in overall taxes to pay even more. Qualquer pessoa que não tenha lido o artigo de D'Souza concordaria que a relação entre anticolonialismo e tributação parece meio maluca. A frase seguinte do texto original, porém, é essa: The anticolonialist believes that since the rich have prospered at the expense of others, their wealth doesn't really belong to them; therefore whatever can be extracted from them is automatically just. Pode-se concordar ou discordar dessa visão do anticolonialismo, mas a essa altura não se pode mais alegar ignorância do nexo lógico da conclusão inicial. Antes de terminar o primeiro parágrafo de seu texto, M.S. dispara: Message to American billionaires and the people who write for them: many events and movements in world history did not revolve around marginal tax rates on rich people in the United States.

Como diria ele próprio, come again? Sugerir que a idéia de que qualquer acumulação de renda é injusta, e que portanto deve ser redistribuida, contribuiu para o crescimento desenfreado da tributação (especialmente sobre milionários) é então o mesmo que dizer que eventos da história mundial (provavelmente ele está se referindo ao anticolonialismo) giram em torno da tributação sobre milionários? Aqui o procedimento foi o seguinte: atribuir absurdidade, através da omissão de termos explicativos, a uma hipótese com que se pode discordar, mas que nada tem de absurda, e em seguida inverter sujeito e objeto da hipótese e atribuí-la novamente ao autor original. Só mesmo não tendo lido o artigo de D'Souza para não desistir dessa brincadeira após o primeiro parágrafo.

Mais adiante M.S. declara que entende perfeitamente como Barack Obama pensa, já que é assim que pensa a maioria dos que se dizem de centro-esquerda nos EUA. Isso nos leva a concluir que se qualquer grupo numeroso de americanos começar a morar em cima de bananeiras, M.S. entenderá perfeitamente como eles pensam.

No pouco espaço que lhe resta, M.S. ainda consegue (a) distorcer uma passagem do The Virtue of Prosperity, em que fica claro a qualquer leitor mediano que o D'Souza defende, sim, a igualdade de oportunidades -- the government is obliged to treat all citizens equally -- ao mesmo tempo em que enaltece as desigualdades de mérito e de inteligência; (b) tecer ilações levianas sobre a história da Índia e envolver a família de D'Souza na bagunça, apenas pra reconhecer mais tarde que era tudo brincadeirinha e que o conhecimento que D'Souza tem sobre o pai de Obama é comparável ao que ele mesmo tem sobre a história da Índia, isto é, nenhum; (c) perguntar aos céus por que, meu Deus, ainda lêem artigos como o de Dinesh D'Souza.

Já vi semelhante baixeza intelectual na mídia brasileira, mas não esperava coisa parecida na Economist. Por que, meu Deus, ainda lêem artigos como esse?

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Eu, substantivo

Nota: neste post há spoilers do Inception.

Na aula 64 do curso online, o Olavo faz um resumo de aulas anteriores com ênfase no tema mais importante, o 'eu substantivo' ou 'eu profundo' ou 'alma imortal', aquilo que realmente somos. O que somos, segundo esse conceito, transcende corpo e mente abrangendo-os: quando digo 'eu', certamente não me refiro somente a meu corpo e à minha mente, mas também a eles. Na realidade a 'alma imortal', sendo perene, é maior que qualquer universo físico imaginável.

A maneira mais fácil de perceber isso é, acho, lembrar que quando pensamos em uma pessoa, pensamos sobre ela, não pensamos ela própria. Se não fosse assim, ela deixaria de ter existência autônoma e seria apenas um objeto do meu pensamento. Da mesma maneira a idéia que faço de mim é apenas um pensamento, não sou eu mesmo; eu, porém, não deixo de existir por isso. Sendo assim, o 'eu substantivo' (o meu e o de qualquer outra pessoa) não pode ser conhecido por pensamento; só pode ser conhecido por intuição ou por 'conhecimento por presença'.

Já vi o Inception, último filme do Cristopher Nolan, sendo criticado por brincar com a noção de realidade, por dissolvê-la na atmosfera do sonho etc. Na realidade o que ele faz é o contrário: no final das contas, Cobb desiste do sonho porque Mal, sua finada esposa e, no sonho, uma projeção de seu subconsciente, é uma 'sombra' quando comparada à Mal real, a Mal-substantiva. Sendo apenas um pensamento, não poderia ser mais que sombra; quando gostamos de alguém, gostamos do 'eu substantivo', não dos pensamentos que ele suscita. Se esse último caso fosse verdadeiro, não precisaríamos lamentar a morte de ninguém.

Outro ponto é que o filme jamais questiona a precedência do estado de vigília sobre o de sono; todos os personagens (exceto as vítimas dos golpes, que apenas de maneira precária são enganadas) parecem estar cientes da distinção entre os dois. Perto do questionamento radical de Descartes, um sonho em que nos basta girar um totem para sabê-lo sonho é brincadeira de criança. Ainda que todo o primeiro plano da ação do filme seja também um sonho, como a tomada final sugere, por que teríamos motivos para nos alarmar se o percebemos tão facilmente? Basta que Cobb preste atenção ao seu totem para percebê-lo também.

Diferentemente do pesadelo de Descartes, aqui o trânsito entre sonho e realidade é até bem previsível: há relação de proporcionalidade entre o tempo transcorrido em ambos; sabe-se o que acontece após a morte em sonho etc. Mais importante que tudo isso, todos os sonhos, não importando em que nível estejam, só fazem sentido quando confrontados com a realidade, e esta nunca deixa de ser reconhecida como tal. De certa maneira, Inception é o mais realista dos filmes.

domingo, 29 de agosto de 2010

Taxação progressiva

Às vezes o aparato estatal parece tão confuso e cansativo que certas verdades tornadas axiomáticas apenas recentemente nos passam desapercebidas ou, pior, percebemo-las dignas do status de inquestionáveis. Nos EUA, o imposto de renda nasceu em 1913 (antes tinha aparecido provisoriamente em situações excepcionais, como a guerra da secessão) e no Brasil só na década de 20. Afora a distinção radical entre taxação direta (IR) e indireta (imposto sobre serviços, produtos etc.), o que me interessa realmente é o princípio ability-to-pay (paga mais quem pode mais) ou taxação progressiva.

A maneira de justificar esse princípio é sempre retroativa: já que temos que arrecadar uma dinheirama, que paguem mais os que mais podem. Mas isso é tão convincente quanto dizer que o aborto deve tornar-se legal porque muitas o praticam, ou que o homicídio deve ser aceito por ser praticado 50.000 vezes ao ano só no Brasil.

Pode parecer exagero de libertarian ensandecido, mas a taxação progressiva é como um roubo institucionalizado, ainda mais porque ela discrimina as vítimas mais opulentas exatamente como o fazem ladrões profissionais. Os ladrões procuram as casas com grandes jardins, torneiras de ouro e TVs de LED; a Receita Federal procura os donos dessas casas. Os assaltantes deixam estar os esfaimados e maltrapilhos; a Receita Federal também.

Tentar argumentar que no final das contas isso é contraproducente para o próprio Estado é inútil por vários motivos, além de me parecer uma espécie de estertor dos derrotados. Idealmente o princípio deveria ser repelido não por comprometer num futuro incerto a bolsa estatal, mas por ser abjeto em si mesmo. De qualquer maneira, é sempre bom lembrar que um aumento salarial representa mais impostos pagos não só pelo funcionário que o recebeu, mas em escala ainda maior pelo empregador. E que o dinheiro que poderia ser reinvestido na empresa (gerando novos e/ou melhores empregos) ou na poupança mesma de seu dono (gerando mais crédito disponível em mercado) é diretamente transferido aos cofres públicos, para o contentamento de burocratas bonachões.

A malha fina de que fala a Receita é termo bem empregado; é preciso capturar as mosquinhas que insistem em voar incorruptíveis. Para mais detalhes, leiam esse livrinho do Frank Chodorov.

domingo, 22 de agosto de 2010

Sir Isaac não andava de ônibus

Ainda no tema da percepção direta da realidade, vejam que o John Derbyshire, nesse artigo, praticamente declara a total inépcia do que ele chama 'folk metaphysics' para lidar com os cada vez mais complexos problemas da ciência moderna. A mente humana individual não vai ser de muita serventia ao investigar a estrutura profunda da realidade, devendo ser substituída, suponho eu, pelo miraculoso 'método científico'. Não me perguntem quem estaria a guiar o tal método científico; logicamente falando, se não é a mente humana individual, só pode ser a mente humana coletiva, isto é, o consenso científico ou algo que o valha.

Derbyshire sugere que a metafísica folk começa a falhar por volta de 1870, citando como exemplo disso a surpresa (surpresa de quem?) ao constatarmos que a reação de sódio com cloro, em circunstâncias propícias, gera o cloreto de sódio ou sal de cozinha, substância radicalmente diferente de seus componentes (um gás venenoso e um metal bastante reativo). Provavelmente Derbyshire também se surpreenderia se lhe constassem que íons de cloro em solução aquosa tampouco têm muita coisa a ver com um gás venenoso, assim como cátions de sódio não são em si metálicos ou sequer palpáveis... ginasianos de química estudam essa e outras reações parecidas com muito mais tédio que assombro, num tópico vestibulando chamado química inorgânica.

Assim ficamos sem saber se a metafísica folk é tão-somente percepções intuitivas e individuais da realidade ou se é a tentativa desastrada de aplicar princípios metafísicos daí extraídos (como o 'like can only come from like') a ordens eminentemente não-metafísicas, como a de uma simples reação química. Se estamos no segundo caso, é preciso reconhecer que ela não servia nem em 1870 nem nos séculos anteriores, que já conheciam a bombástica reação do sal de cozinha.

É ao falar das leis de movimento de Newton, porém, que o artigo de Derbyshire cai de uma vez no ridículo. Aí vai o resuminho que ele faz:
Sir Isaac: An object in uniform motion stays that way until a force is applied.

Folk Metaphysician: No it doesn’t. Objects set moving on the level always roll or slide to a stop. Things moving through the air fall to the ground, unless they’re flying. On water, things get carried every which way by currents, and sometimes sink.

Sir Isaac: Apply a constant force to a constant mass, you’ll get steady acceleration.

Folk Metaphysician: A horse pulling a wagon is applying constant force to constant mass, isn’t it? So if your so-called “law” is true, why wasn’t 19th-century America full of horses and wagons zipping around at hundreds of miles an hour? Huh?

Sir Isaac: Every action generates an equal and opposite reaction.

Folk Metaphysician: So when I push on this wall with my hand. the wall pushes back? What, there’s a little hand in the wall pushing back at mine? Hoo hoo hoo! How’s it know when to stop pushing? Ha ha ha ha!
No primeiro caso, a objeção do folk metaphysician está totalmente correta: não seria possível construir uma ponte ou uma estrada ou qualquer coisa sem levar em conta o efeito do atrito, o mesmo que impede que os objetos continuem se movendo indefinidamente. No segundo caso a objeção poderia ser feita por um aluno de 12 anos que leu sobre força de Newton pela primeira vez, sendo suficiente para acabar com a confusão um professor que lhe explicasse que uma força de atrito dinâmico, de mesma magnitude e em sentido contrário, atua sobre a carroça zerando a força resultante e fazendo com que ela se mova em velocidade aproximadamente constante. No terceiro caso a objeção, creio eu, só existe na cabeça de Derbyshire. Nunca vi semelhante disparate sendo formulado, e vejam que estudei no Brasil. É claro que a parede atua sobre nossas mãos, ou não sentiríamos dor ao socá-la.

Uma objeção mais inteligente à lei da ação-e-reação de Newton seria observar que, quando estamos num ônibus em processo de frenagem, somos empurrados para frente sem que exerçamos força de reação em quem quer que seja. Temos aí um exemplo de folk metaphysics, e de folk que anda em ônibus, fazendo frente aos desafios da ciência moderna. Hoo hoo hoo! Ha ha ha ha!

sexta-feira, 23 de julho de 2010

'With or without you' em cerimônia de casamento

Bola fora ou é só impressão minha?

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Razão espontânea

Na aula 20 do curso de filosofia, Olavo de Carvalho fala da diferença entre razão espontânea e razão refletida. Dá como exemplo de razão espontânea a percepção pré-analítica de um esquema probabilístico, como o resultado em um jogo de cartas. Digo pré-analítica porque o sujeito parece perceber quais são as alternativas mais vantajosas antes mesmo de considerar detidamente a formulação matemática do problema (os jogadores ficam com as palmas das mãos suadas sempre que optam pela alternativa mais arriscada). Apesar de a conclusão mais comum ser atribuir esse conhecimento à inconsciência, o Olavo objeta que esse tipo de conhecimento é tão consciente quanto as considerações matemáticas posteriores, sendo que estas últimas nos dão mais segurança apenas porque são criações dirigidas por nós mesmos, e não algo que nos chega diretamente da realidade.

O ponto que mais me interessa nessa discussão toda é, claro, como aperfeiçoar a razão espontânea. Alguém fez essa pergunta durante a aula e o Olavo aconselhou a simples abertura intelectual à realidade, a rejeição do senso-comum pré-fabricado etc. Parece mesmo difícil conceber uma maneira de treinar esse tipo de razão, tanto que, na faculdade, quando deparávamos com um exemplo de razão espontânea prodigiosa, atribuíamos o ocorrido à 'inteligência' do sujeito. Só posso dar exemplos da engenharia porque tenho muito pouca experiência com temas filosóficos.

Na faculdade de engenharia, a minha impressão era a de que todos os alunos tinham a faculdade de razão refletida mais ou menos equivalente; qualquer discrepância pontual era facilmente explicada por falta de estudo do assunto específico. Já a razão espontânea variava muito, especialmente em problemas de visualização geométrica. Enquanto alguns sofriam para projetar interseções de planos ou desenhar sólidos a partir de suas projeções, outros faziam-no automaticamente e sem precisar seguir o procedimento canônico (o procedimento na mais das vezes os atrapalhava).

Outro aspecto curioso da razão espontânea é que, além de distribuída desigualmente entre os seres humanos, ela parece ser heterogênea também dentro de cada um deles: enquanto alguns tinham-na desenvolvidíssima para a geometria descritiva e pífia para a álgebra linear, outros, que não podiam desenhar uma pirâmide a partir de suas projeções, intuíam a diagonalização de matrizes sem conhecimento prévio do procedimento.

Um dos meus melhores amigos da época era quase infalível em estimações aleatórias, como acertar a área superficial do continente africano ou do corpo humano, o peso dos livros em uma biblioteca ou o número de bolas de tênis necessárias para encher uma sala. Numa das vezes em que tentou melhorar a estimativa com cálculos, acabou piorando o número.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Ódio ao sucesso

É notório o desprezo, ou até mesmo ódio, que o brasileiro tem pelo conhecimento; os personagens do Lima Barreto nos lembram disso o tempo todo. José Guilherme Merquior, que lia muito, foi acusado de terrorismo bibliográfico em debate público por tentar rastrear uma idéia com mais de duas ou três referências. Eu diria que o brasileiro tem ódio ao sucesso alheio, mas por que teria ódio ao conhecimento se ele mesmo não considera isso uma forma de sucesso? Nesse caso acho que há mais birra que ódio; há a simples constatação de que outros têm o que não tenho. Ou, para não desacreditar de todo da raça humana, há a vaga intuição de que o conhecimento nos leva a um mundo mais interessante e, para eles, insondável.

Quando o assunto é dinheiro a coisa muda de figura. O dinheiro se transformou no parâmetro preferido de aferição do caráter humano: odeia-se quem não se comporta apropriadamente em relação a ele. Nós armamos esquemas sociais curiosos pra tentar fugir a essa conclusão. Exemplo: emprestamos dinheiro com prodigalidade, mas apenas para aqueles que sabemos serem bons pagadores. Ao mesmo tempo em que afetamos desprendimento em relação a bens materiais, fomentamos um ambiente de execração aos devedores. Pagam-se as dívidas não mais por sentimento de dever, mas por medo de retaliação. Prova disso é que, quando o credor se esquece da dívida, o devedor acompanha-o de bom grado na amnésia contábil.

Vejam o caso dos judeus. Até há poucos anos eu supunha ingenuamente que os anti-semitas praticamente inexistiam entre nós. Supunha também que os poucos que existissem justificariam o anti-semitismo com algo mais que o argumento da dominação fiduciária. A totalidade dos anti-semitas que conheço pessoalmente (não são muitos, mas a coincidência já me parece assombrosa) podem até ter motivos mais obscuros para serem anti-semitas, mas, ao tentar explicá-lo, só se lembraram de mencionar episódios de ordem pecuniária, alguns deles pateticamente anódinos. Ainda que não esteja aí o principal motivo, é com esse motivo que eles esperam conquistar nossa empatia.

De toda a complexidade da origem do anti-semitismo, pouca coisa parece ter sobrado, no Brasil, além do dinheirismo. Deve servir de consolo aos judeus a percepção de que por aqui todo sucesso financeiro é visto com desconfiança. Poderia haver preconceito mais contraproducente?

domingo, 13 de junho de 2010

De quando os presidentes americanos impunham respeito

Na lavanderia

-- Pra terça não dá, tem jogo do Brasil.

Não se usam calças em dia de jogo do Brasil?

quinta-feira, 3 de junho de 2010

A demonização da carne







Excetuando as peças oficiais protagonizadas pelo próprio presidente ou por colegas de partido, as que vão acima são as piores que já vi na vida. Elas primam, como é bem perceptível, pela sutileza.

A primeira pergunta a ser feita é: por que escolheram a carne? Não há indício de que a produção ilegal de carne bovina no Brasil seja um flagelo comparável a outros que existem indubitavelmente: economia informal, corrupção, sonegação de impostos etc. O terceiro vídeo inclusive fala em sonegação fiscal, mas haverá mais sonegação no campo ou na indústria? As grandes movimentações de dinheiro são mais 'secretas' nas grandes fazendas de gado de corte ou nas grandes estatais brasileiras? Num país em que há muitos problemas, exige-se certo senso de prioridades; o que levou o ministério público a priorizar o problema das carnes? A minha resposta a essa primeira pergunta fica para o fim.

Em segundo lugar, choca, ou deveria chocar, o fato de o MP denegrir justamente o setor da economia em que o Brasil se destaca. O Brasil é o segundo maior produtor de carne bovina do mundo; o maior exportador do mundo. Das 10 empresas que mais exportaram no Brasil em 2008, 4 são de bens de consumo. A JBS, que lida principalmente com carne bovina, aparece em 22o. lugar, com valor de exportação superior a 20% do valor de exportação da Embraer, produtora de aviões quase exclusivamente destinados ao exterior (apareceu aí a Azul, a linha aérea brasileira que paradoxalmente compra aviões brasileiros!). Resta alguma dúvida de por que a balança comercial brasileira ainda pára em pé? Nos setores da economia em que tropeçamos, damos um jeito de responsabilizar maldade, opressão e legado estrangeiros; naqueles em que nos destacamos, cometemos suicídio publicitário. Seria só burrice?

Vejam que no segundo vídeo o sujeito fala em trabalho escravo. Sobre esse assunto fala a senadora Kátria Abreu (DEM-TO), presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA), nas páginas amarelas da Veja de algumas semanas atrás:
A Organização Internacional do Trabalho define o trabalho forçado como aquele feito sob armas, com proibição de ir e vir ou sem salário. Isso, sim, é trabalho escravo, e quem o pratica deve ir para a cadeia. O problema é que, pelas normas em vigor no Brasil, um beliche fora do padrão exigido pode levar o fazendeiro a responder por maus-tratos aos empregados. A NR-31 é uma punição à existência em si da propriedade privada no campo. (...) Imagine a seguinte situação: é hora do almoço, o trabalhador desce do trator, pega a marmita e decide comer sob uma árvore. Um fiscal pode enquadrar o fazendeiro por manter trabalho escravo simplesmente porque não providenciou uma tenda para o almoço do tratorista. Isso é bem diferente de chegar a uma fazenda e encontrar o pessoal todo comendo sob o sol inclemente. São duas situações diferentes. Mas elas provocam as mesmas punições. Isso confunde o pessoal do campo, que passa a se sentir sempre um fora da lei.
Sempre desconfiei que as condições de trabalho nas fazendas brasileiras fossem tão desconhecidas pelos denunciadores de plantão quanto por mim mesmo, até então um completo desinteressado no assunto. Em outro artigo, publicado no Estadão, a mesma senadora continua:
Em quase todos os casos, os enquadrados como escravagistas não são processados. E por um motivo simples: não o são. As autuações trabalhistas que apontam prática de trabalho escravo são insuficientes para levar o Ministério Público a oferecer denúncias pela prática de infrações criminais. O resultado é que, enquanto isso não ocorre, o produtor tachado de escravagista fica impedido de prosseguir em seu negócio e acaba falido ou tendo de abrir mão de sua propriedade. A agressão, como se vê, não é somente contra o grande proprietário, mas também contra a agricultura familiar, cuja defesa é o pretexto de que se valem os invasores e difamadores.
Então o MP, incapacitado de levar a cabo as denúncias contra colchões irregularmente fofos, faz o obséquio de espalhar em cadeia nacional que os grandes responsáveis pelo equilíbrio da balança comercial são em verdade ignominiosos senhores de escravos. Quem, afinal, terá melhores condições de descrever a real situação nas fazendas, o governo ou a CNA? Eis os números: "Os grupos móveis de fiscalização do MT percorreram, em sete anos - de 2003 até hoje -, 1.800 fazendas. A CNA, em 90 dias, percorreu mil fazendas e já está promovendo o circuito de retorno, para averiguar as providências tomadas."

Além de completamente inúteis (por apenas promoverem uma transferência de responsabilidades preguiçosa e cínica, do tipo 'já que não fazemos, faça você!, seja consciente!', sem que haja a preocupaçao de fornecer meios para tanto, e sem que haja uma justificativa de por que essa responsabilidade deveria ser nossa), esses anúncios oficiais traem o preconceito brasileiro contra o agronegócio, que se acentua e chega às raias da loucura quando esse agronegócio inclui, como não poderia deixar de fazê-lo, a produção de carnes.

O único aspecto meritório das peças publicitárias é o visual; recomendo assistir no mudo, abstraindo as legendas. E bom almoço.

sábado, 15 de maio de 2010

O coeficiente de desconhecimento

Entrei um pouco atrasado no curso de filosofia do Olavo de Carvalho, mas acho que ainda consigo alcançar o bonde. Nas primeiras aulas ele fala muito da dificuldade de suprimir o hiato entre discurso filosófico, conceitos universais etc. e a experiência real. Parece que as pessoas desdenham uma apreensão exata da experiência real porque (a) ela seria banal, sendo portanto mais interessante ir direto às fantasias mirabolantes, ou (b) ela seria impossível. No item b incluem-se relativistas, desconstrucionistas etc. que dizem, entre outras coisas, que o que vemos não são os objetos em si, mas uma manifestação fenomênica particular. Por exemplo, podemos ver um elefante pelo lado direito e a 10m de distância, ou a 20m de distância, mas nunca o elefante global, o elefante em si.

Assim como há os que acham que podemos saber tudo (e se empolgam), há os que acham que não podemos saber nada (e se desesperam). Essa observação do elefante é o tipo da coisa boba que acaba sendo aceita quando expressa em linguagem acadêmica, e simplesmente porque ninguém está treinado pra negar o que é obviamente falso. O Olavo observa que a limitação (se vamos considerar isso uma limitação...) de não podermos observar o elefante dos dois lados simultaneamente corresponde à 'limitação' do elefante de não poder se mostrar da mesma forma.

O coeficiente de desconhecimento, então, é a medida do que não é potencialmente conhecível: não sabemos não por falha nossa, mas porque tem de ser assim. Acho engraçado quando esses conceitos encontram correspondentes científicos: ninguém sai por aí dizendo que a física está acabada porque não podemos conhecer, exata e simultaneamente, a posição e o momento linear de uma partícula. Pois é precisamente isso que enuncia o princípio da incerteza de Heisenberg: o produto das incertezas de cada grandeza é sempre maior que uma dada constante (no caso, a constante de Planck reduzida dividida por 2), isto é, se conhecemos com precisão a posição da partícula, pouco sabemos sobre seu momento linear.

Mais uma vez, há quem ache que se trata de uma limitação do observador (como o próprio Heisenberg), e há quem acredite que se trata da natureza mesma do sistema, assim como descrita pelas equações da mecânica quântica. O elefante fica mais complexo e nós ficamos mais calmos.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Depois de três meses em Santa Catarina...

Minha opinião sobre Santa Catarina ainda é, creio, ambígua.

Morei em Balneário Camboriú, então estive em contato direto com o frenesi juvenil do lugar, o que pode ser desvantajoso num domingo à noite. Conheci o lado mais tradicional do estado em Blumenau, num festival de chopp em que vovôs dançavam com os netos, e em Brusque, comprando toalhas e malhas de frio. Espero um dia tomar um chopp Eisenbahn com meu neto; espero que ele não precise ir a Brusque pra comprar toalhas.

Balneário, apesar de bem arrumada, não consegue escapar à sina das cidades litorâneas: péssimo atendimento em hotéis e restaurantes, comida sem graça, malandro de sunga no elevador etc. Uma desvantagem peculiar do local é a quantidade assombrosa de argentinos e uruguaios malcriados. Comparado com o Rio, temos ainda um paraíso: as praias são mais bonitas e as banhistas não fazem por menos.

Não estou voltando a São Paulo por opção própria, mas confesso que certas facilidades da cidade grande já estavam fazendo falta, como poder mandar o carro para a oficina depois das 18.00h e comer um hamburguer depois das 2.00h. Por algum motivo nada misterioso, praia não combina com trabalho depois do expediente.

Deus no cinema

Pode vir como surpresa o fato de os maiores filmes de 2009 tratarem, essencialmente, de religião.

Avatar encena uma tribo que às vezes parece se aproximar do cristianismo, às vezes (ou quase sempre) do ambientalismo romântico tão caro aos Camerons da política. Whatever Works é mais uma diatribe (a lista vai crescendo) de Woody Allen contra a ingenuidade intelectual de quem nasceu fora de Nova York ou acredita em Deus. A Serious Man, dos irmãos Coen, ridiculariza a insistência com que o homem tenta interagir com o divino. Não vi The Invention of Lying, mas o título é eloquente. E por aí vai.

No primeiro caso a divindade é imponente e até visualmente fascinante, mas a ganância capitalista parece bastar para destruí-la. No segundo ela nem sequer existe, e qualquer pensamento nesse sentido é ridículo. No terceiro, aprendemos que na mais das vezes é mais sábio deixá-la em paz. O único filme recente em que criador se impõe sobre criatura, em generosa concessão à terminologia, é The Book of Eli. O Deus desse filme é sem dúvidas poderoso e misterioso, mas não há garantias de que seria um líder inspirado. Denzel Washington, guardião do livro num mundo pós-apocalíptico, raramente cita passagens escriturais e faz um resumo franzino de todo seu aprendizado: dar aos outros mais que a si mesmo.

Em artigo na First Things, Thomas Hibbs comenta que Perhaps the most instructive lesson to take away from the religious themes in recent films is the way our popular culture seems to vacillate between essentially empty conceptions of a transcendent God and increasingly fertile notions of divine immanence. O divino pulula no imaginário popular - seja em florestas ou em desertos futurísticos -, mas o Deus que lhe dá nome é cada vez mais banal. Dado esse cenário, faz até sentido ser ateu.

segunda-feira, 29 de março de 2010

Testando o gerundismo na balada

- Eu gostaria de estar sabendo o que eu poderia estar fazendo para estar me aproximando de você.

- Hã?

- Oi, tudo bem?

- Oiii...

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Música para os pés

A música é de grande importância para os corredores, principalmente os de fim de semana, como eu. Outro dia tive de interromper inesperadamente uma corrida porque a bateria do iPod acabou. Um passatempo divertido consiste em antecipar que músicas se adaptam bem à ocasião, sem apelar, é claro, para as obviedades - música eletrônica ou com muitas repetições.

Percebi recentemente que músicas de tempo mais moderado às vezes funcionam bem, como Sympathy for the Devil e Jigsaw Puzzle dos Rolling Stones. Minha maior descoberta foi sem dúvidas a On Every Street do Dire Straits: se você conseguir sobreviver aos primeiros minutos, o ritmo final é recompensador. There There do Radiohead tem o mesmo efeito.

Em vez de medir a distância que faço num determinado tempo, ou em quanto tempo consigo percorrer certa distância, meço a distância que consigo vencer durante uma playlist. Como venho tentando melhorar meu desempenho, fiz uma mais ortodoxa dessa vez. Aí vai ela, para os curiosos:

1. Megadeth - Crush 'Em
2. Office of Strategic Influence - Radiologue
3. Rory Gallagher - Moonchild
4. The Strokes - You Only Live Once
5. Wolfmother - Eyes Open
6. Arctic Monkeys - Crying Lightning
7. Chickenfoot - Oh Yeah

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

The Larry David Syndrome

A síndrome de Larry David consiste em imitar o Larry David. Existem dois tipos de ídolos - os que queremos imitar e os que preferimos admirar contemplativamente, sem manifestações externas. Se não fosse pelo fato de ser milionário e poder pegar a mulher que quiser, não sei se muitos gostariam de ser o Larry David; então não sei dizer se a LDS, com essas enormes ressalvas, é patologia rara.

Uma coisa é certa: a satisfação de tratar as pessoas com a seriedade que elas merecem é impagável. Como estou de férias e vou me mudar em breve, sinto-me livre para imitar o Larry David nas mais diversas ocasiões - restaurantes, bares, consultórios médicos, reuniões familiares etc. Quando não julgam que sou louco, as mulheres adoram. Espero um dia conseguir voltar a levar as pessoas a sério.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Há metafísica na matéria

Ideas have consequences, do norte-americano Richard M. Weaver, é um daqueles livros que, se fossem lidos e meditados por adolescentes entrando na faculdade mundo afora, melhorariam radicalmente a humanidade. Juntamente com o La rebelión de las masas do Ortega y Gasset e o Orthodoxy do Chesterton, ele deveria estar na cabeceira de todos os jovens. Assim como os outros dois, ele tem a capacidade, especialmente admirada por espíritos apressados, de concentrar em poucas páginas uma quantidade atordoante de comentários revolucionários (ainda que não necessariamente originais). Aproprio-me dos termos 'radical' e 'revolucionário' com gosto: por mais que o leitor discorde do autor, sai com a inarredável impressão de ter visitado terrenos inauditos.

Veja-se como exemplo disso o que Weaver tem a dizer em seu sétimo capítulo, chamado the last metaphysical right. Depois de expor em seis capítulos o mundo que ele acredita decadente, chega a hora de sugerir um plano de ação. A que princípio devemos apelar num mundo que aprendeu a viver sem metafísica? Ao último princípio metafísico que nos resta: o da propriedade privada. Aqui há duas observações: (a) o respeito à propriedade privada é dito metafísico porque funciona independentemente de, ou até a despeito de, sua utilidade social, não se reduzindo a mero utilitarismo e (b) a longevidade desse princípio é nada menos que impressionante quando se considera a força que já tiveram alguns de seus adversários. Hoje, se queremos chegar a uma unanimidade numa democracia, o mais seguro a fazer é apelar ao direito à propriedade privada, talvez até mais que ao direito à vida(*).

Nas mãos das criaturas descritas nos seis primeiros capítulos do livro, o respeito pela propriedade privada pode se transformar, é certo, em mais um artifício para esmagar o pouco de metafísica que resta no mundo. Sob orientação mais saudável a coisa muda de figura por vários motivos:

- A propriedade privada está associada à dignidade pessoal porque o que possuimos também nos define. Por mais que seja danoso lembrar-se disso com muita frequência, minhas roupas e objetos pessoais também fazem parte do que se entende por Igor;

- O exercício da virtude só é possível num ambiente que encoraja a escolha sob responsabilidade individual; ninguem pode ser prudente ou generoso em relação a bens materiais sem haver antes uma relação direta de propriedade. Weaver observa que costumava ser motivo de orgulho para uma família dar o nome do clã ao produto por eles produzido; há aí um compromisso de qualidade e de responsabilidade que é pulverizado assim que as corporações se tornam impessoais ou, como a própria expressão em português traduz bem, 'sociedades anônimas'(**).

- O princípio da propriedade privada é tão dogmático quanto qualquer dogma religioso. A maneira mais certa de encerrar uma discussão sobre o que fazer com meus pertences é simplesmente lembrar que eles são meus pertences. Quem se arriscaria a dizer de onde vem tanta autoridade?

Por mais doloroso que seja admiti-lo, partimos de princípios dogmáticos o tempo todo. Seria impossível viver de outra maneira, assim como seria impossível ao matemático provar que a soma dos ângulos internos de um triângulo é 180 graus sem aceitar o quinto axioma de Euclides. Dizem que o esquerdista é quem leva adiante um raciocínio mesmo sem acreditar em seus pressupostos; eu diria que quem faz isso é maluco.

(*) Quando eu era criança, apenas duas coisas me afligiam no mundo das idéias - a primeira lei de Newton (princípio da inércia) e o direito que temos de dispor de nossos bens mesmo depois de mortos, isto é, o direito de deixar um testamento. No primeiro caso, vemos a fácil aceitação, por parte de uma população altamente empirista, de um princípio que pode ser tudo, menos empírico; no segundo, vemos o direito a dispor de propriedades persistir mesmo depois de suspenso o direito à vida.

(**) Crises financeiras como a que acabou de abater o mundo só poderiam existir num contexto de sociedades (e de indivíduos) anônimos. Longe de representar o princípio da propriedade privada na prática, a especulação financeira subtrai o elemento mais importante da aliança: o proprietário.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

O primogênito da modernidade

Em vez de tentar adivinhar o que quer dizer 'cultura' para Jacob Burckhardt no A cultura do renascimento na Itália, observo apenas que ele exclui desse ensaio quaisquer considerações mais demoradas sobre a economia e sobre as artes plásticas do período. As artes plásticas foram desconsideradas porque ele pretendia escrever um volume separado a respeito (aparentemente nunca concluído); quanto à economia, não sei o que dizer, mas o certo é que não se pode alegar que sua concepção de cultura não era suficientemente ampla - há um segmento inteiro sobre vestuário, língua, etiqueta, festividades sagradas e profanas etc. dos italianos do período.

Mesmo sem querer me perder em psicologismos baratos, é difícil não reparar no interesse que um suíço como Burckhardt (em seus últimos anos um catedrático conservador e circunspecto) tem pelas atrocidades da política italiana, interesse que Peter Burke atribui à 'ênfase à percepção do Outro' e à tradição germânica de fascinação pelo demoníaco. Afora a teoria central do livro, Burckhardt é muito moderado, talvez até demais - não sabemos se devemos atribuir a um relativismo bonachão ou à pura encheção de linguiça declarações como as que vão abaixo. A vantagem disso é que Burckhardt repudia as ditas filosofias da história, observando prudentemente que a história é a-filosófica e a filosofia a-histórica.
Em obras de história geral, há espaço para diferenças de opinião quanto aos objetivos e premissas ufndamentais, de modo que o mesmo fato pode, por exemplo, afigurar-se essencial e importante a um escritor, mas nada mais do que mero entulho sem qualquer interesse a outra;

(...) os mesmos estudos realizados para este trabalho poderiam, nas mãos de outrem, facilmente experimentar não apenas utilização e tratamento totalmente distintos como também ensejar conclusões substancialmente diversas,
Quanto à teoria central do livro, a de que o italiano do renascimento é o primogênito da Europa moderna (assim como Petrarca seria o primeiro homem moderno), há boa dose de convicção. Na realidade parece que os capítulos do livro foram escolhidos na medida em que são capazes de verificar essa hipótese. Antes de ir adiante reproduzo o trecho a que me refiro:
Na Idade Média, [...] o homem reconhecia-se a si próprio apenas como raça, povo, partido, corporação, familia ou sob qualquer outra das demais formas do coletivo. Na Itália, pela primeira vez, tal véu dispersa-se ao vento; desperta ali uma contemplação e um tratamento objetivo do Estado e de todas as coisas deste mundo. Paralelamente a isso, no entanto, ergue-se também, na plenitude de seus poderes, o subjetivo: o homem torna-se um indivíduo espiritual e se reconhece como tal.
A princípio parece surpreendente que um período que entendia como glória intelectual máxima emular tão perfeitamente quanto possível um outro período, a Antiguidade, seja creditado com tantos pioneirismos - o da biografia moderna, da epistolografia moderna, da apreciação por paisagens em si mesmas, e não apenas como cenários, do escárnio e da espirituosidade modernos, da poesia moderna, das viagens de descobrimento, etc., etc. Explica esse fenômeno a proposição de que foi a união da antiguidade com o espírito italiano, e não a antiguidade sozinha, a responsável por tamanhas façanhas culturais. A questão do pioneirismo em si me parece ociosa - a atividade intelectual do período já permite que ele seja singularizado a despeito disso.

Sempre que se diz que o cristianismo 'inventou' isso ou aquilo aparece um espertinho lembrando que um monge budista ou um mendigo fez isso ou aquilo uma semana antes. De maneira análoga a existência de exceções parece impossibilitar a existência de qualquer tendência pra certas pessoas. Seria fácil apontar, como de fato se faz com frequência, que os modernos não poderiam ter 'inventado' a autobiografia porque já existem algumas bem notórias no século XII, ou que a busca incessante pela fama individual não é um fenômeno moderno porque era precisamente isso que inflamava os cavaleiros medievais. Quando se trata de preciosismo cronológico a discussão é, repito, ociosa.

O problema surge quando o evento mesmo a que se quer atribuir pioneirismo é confuso: entende-se bem o que queremos dizer com caridade cristã; 'consciência individual' e 'modernidade', por outro lado, merecem ser definidos com mais cuidado, algo que Burckhardt não tenta fazer nesse livro. Não é a existência (ou não só a existência) de autobiografias afamadas e de cavaleiros medievais orgulhosos que nos faz suspeitar de que a consciência individual teria surgido muito antes - é antes a existência de todo um período, a Idade Média, em que essas objeções são só manifestações pontuais.

O desprezo com que o período medieval era (e é) tratado por historiadores modernos é tão conspícuo que até os manuais de história brasileiros já ensaiam retratações, abandonando gradativamente - vejam quanta cortesia - o epíteto Idade das Trevas. Burckhardt refere-se ao período como infantil, adjetivo que ele mesmo, mais velho, viria a rejeitar, assim como sua noção de individualismo: "No que diz respeito ao individualismo, eu já não acredito nele". Consta que Burckhardt, quando mais jovem, nutria o desejo de tornar-se um medievalista mas desistiu quando perdeu a fé.

Talvez o relativo desprezo de Burckhardt pela filosofia tenha contribuído para esse estado de coisas. Um período histórico que coroa Cícero - em detrimento de Platão e Aristóteles - como sua figura filosófica suprema deveria levantar suspeitas numa natureza mais dada a considerações desse tipo. Ao discutir a crise renascentista da noção de imortalidade da alma, ou a gradativa substituição, no imaginário da época, do paraíso cristão pelo céu pagão (com todas suas variantes), confesso não perceber qualquer tipo de juízo de valor.

Além de alguns pontos já citados aqui, Burckhardt costuma ser criticado por não dar conta das transformações históricas do período que descreve - uns bons 300 anos -, mas isso parece ser um preço baixo a se pagar quando o resultado é uma figura coerente do período como um todo. Em determinado ponto de sua carreira de professor Burckhardt decide dar menos importância aos 'meros fatos' (tendência perigosa quando levada ao extremo - veja-se a incapacidade dos estudantes de hoje de memorizar datas importantes) e concentrar-se no que ele passou a chamar de história cultural. Abriu-se aí um precedente que, apesar de muito criticado, conseguiu chegar até nós com boa vitalidade.

sábado, 2 de janeiro de 2010

Depois de três meses no Rio...

Certas coisas passam de inaceitáveis a guilty pleasures e daí a completamente naturais numa velocidade que chega a surpreender. O funk é um caso sintomático: parece haver um acordo silencioso segundo o qual os homens não o ridicularizam para que as mulheres possam continuar dançando sem tanto peso na consciência. Assim sai todo mundo ganhando: as mulheres podem dançar sem ser consideradas alienígenas e os homens podem assistir a tudo sem o estigma da depravação. O entretenimento no Rio de Janeiro vive desse acordo.

A inserção dessas maluquices no que é considerado socialmente aceitável desafia a nossa criatividade. É como se um sujeito dissesse numa conversa informal que desertou do seu pelotão numa guerra e nós tivéssemos de rebater com um comentário conciliador, 'ah, essas guerras são complicadas mesmo'. O sujeito dá uns tapas na mulher e nós observamos que a moça era realmente insuportável. Quando me perguntam o que acho do funk, observo que no estado do Rio de Janeiro não há nada mais natural, deixando por conta do interlocutor a associação entre a frequência de um evento e sua razoabilidade.

De todos os brasileiros que conheci até hoje, os fluminenses parecem ser os mais orgulhosos de sua terra (seguidos de perto por mineiros e cearenses). De fato há por lá muitas belezas naturais, humanas ou não, mas minha impressão geral foi a de que a desordem impera. Como diria uma atriz global aterrorizada com a capital, 'a lei não funciona e os carros páram em cima das calçadas'. Eis aí mais um bom termômetro civilizacional: o respeito às vagas de estacionamento.

Depois de algum esforço consegui convencer meus amigos cariocas a reconhecer que o carioca é mais malandro. A amizade tem dessas coisas constrangedoras: cariocas sendo levados à sinceridade sobre si mesmos! O certo é que eles personificam como ninguém (à exceção talvez dos baianos, os cariocas do nordeste) o caráter brasileiro. Sobre o caráter brasileiro creio já ter falado até demais por aqui. Fica então minha despedida ao Rio, terra muito bonita para onde espero não ter de voltar tão cedo, a menos que de férias.