segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

O primogênito da modernidade

Em vez de tentar adivinhar o que quer dizer 'cultura' para Jacob Burckhardt no A cultura do renascimento na Itália, observo apenas que ele exclui desse ensaio quaisquer considerações mais demoradas sobre a economia e sobre as artes plásticas do período. As artes plásticas foram desconsideradas porque ele pretendia escrever um volume separado a respeito (aparentemente nunca concluído); quanto à economia, não sei o que dizer, mas o certo é que não se pode alegar que sua concepção de cultura não era suficientemente ampla - há um segmento inteiro sobre vestuário, língua, etiqueta, festividades sagradas e profanas etc. dos italianos do período.

Mesmo sem querer me perder em psicologismos baratos, é difícil não reparar no interesse que um suíço como Burckhardt (em seus últimos anos um catedrático conservador e circunspecto) tem pelas atrocidades da política italiana, interesse que Peter Burke atribui à 'ênfase à percepção do Outro' e à tradição germânica de fascinação pelo demoníaco. Afora a teoria central do livro, Burckhardt é muito moderado, talvez até demais - não sabemos se devemos atribuir a um relativismo bonachão ou à pura encheção de linguiça declarações como as que vão abaixo. A vantagem disso é que Burckhardt repudia as ditas filosofias da história, observando prudentemente que a história é a-filosófica e a filosofia a-histórica.
Em obras de história geral, há espaço para diferenças de opinião quanto aos objetivos e premissas ufndamentais, de modo que o mesmo fato pode, por exemplo, afigurar-se essencial e importante a um escritor, mas nada mais do que mero entulho sem qualquer interesse a outra;

(...) os mesmos estudos realizados para este trabalho poderiam, nas mãos de outrem, facilmente experimentar não apenas utilização e tratamento totalmente distintos como também ensejar conclusões substancialmente diversas,
Quanto à teoria central do livro, a de que o italiano do renascimento é o primogênito da Europa moderna (assim como Petrarca seria o primeiro homem moderno), há boa dose de convicção. Na realidade parece que os capítulos do livro foram escolhidos na medida em que são capazes de verificar essa hipótese. Antes de ir adiante reproduzo o trecho a que me refiro:
Na Idade Média, [...] o homem reconhecia-se a si próprio apenas como raça, povo, partido, corporação, familia ou sob qualquer outra das demais formas do coletivo. Na Itália, pela primeira vez, tal véu dispersa-se ao vento; desperta ali uma contemplação e um tratamento objetivo do Estado e de todas as coisas deste mundo. Paralelamente a isso, no entanto, ergue-se também, na plenitude de seus poderes, o subjetivo: o homem torna-se um indivíduo espiritual e se reconhece como tal.
A princípio parece surpreendente que um período que entendia como glória intelectual máxima emular tão perfeitamente quanto possível um outro período, a Antiguidade, seja creditado com tantos pioneirismos - o da biografia moderna, da epistolografia moderna, da apreciação por paisagens em si mesmas, e não apenas como cenários, do escárnio e da espirituosidade modernos, da poesia moderna, das viagens de descobrimento, etc., etc. Explica esse fenômeno a proposição de que foi a união da antiguidade com o espírito italiano, e não a antiguidade sozinha, a responsável por tamanhas façanhas culturais. A questão do pioneirismo em si me parece ociosa - a atividade intelectual do período já permite que ele seja singularizado a despeito disso.

Sempre que se diz que o cristianismo 'inventou' isso ou aquilo aparece um espertinho lembrando que um monge budista ou um mendigo fez isso ou aquilo uma semana antes. De maneira análoga a existência de exceções parece impossibilitar a existência de qualquer tendência pra certas pessoas. Seria fácil apontar, como de fato se faz com frequência, que os modernos não poderiam ter 'inventado' a autobiografia porque já existem algumas bem notórias no século XII, ou que a busca incessante pela fama individual não é um fenômeno moderno porque era precisamente isso que inflamava os cavaleiros medievais. Quando se trata de preciosismo cronológico a discussão é, repito, ociosa.

O problema surge quando o evento mesmo a que se quer atribuir pioneirismo é confuso: entende-se bem o que queremos dizer com caridade cristã; 'consciência individual' e 'modernidade', por outro lado, merecem ser definidos com mais cuidado, algo que Burckhardt não tenta fazer nesse livro. Não é a existência (ou não só a existência) de autobiografias afamadas e de cavaleiros medievais orgulhosos que nos faz suspeitar de que a consciência individual teria surgido muito antes - é antes a existência de todo um período, a Idade Média, em que essas objeções são só manifestações pontuais.

O desprezo com que o período medieval era (e é) tratado por historiadores modernos é tão conspícuo que até os manuais de história brasileiros já ensaiam retratações, abandonando gradativamente - vejam quanta cortesia - o epíteto Idade das Trevas. Burckhardt refere-se ao período como infantil, adjetivo que ele mesmo, mais velho, viria a rejeitar, assim como sua noção de individualismo: "No que diz respeito ao individualismo, eu já não acredito nele". Consta que Burckhardt, quando mais jovem, nutria o desejo de tornar-se um medievalista mas desistiu quando perdeu a fé.

Talvez o relativo desprezo de Burckhardt pela filosofia tenha contribuído para esse estado de coisas. Um período histórico que coroa Cícero - em detrimento de Platão e Aristóteles - como sua figura filosófica suprema deveria levantar suspeitas numa natureza mais dada a considerações desse tipo. Ao discutir a crise renascentista da noção de imortalidade da alma, ou a gradativa substituição, no imaginário da época, do paraíso cristão pelo céu pagão (com todas suas variantes), confesso não perceber qualquer tipo de juízo de valor.

Além de alguns pontos já citados aqui, Burckhardt costuma ser criticado por não dar conta das transformações históricas do período que descreve - uns bons 300 anos -, mas isso parece ser um preço baixo a se pagar quando o resultado é uma figura coerente do período como um todo. Em determinado ponto de sua carreira de professor Burckhardt decide dar menos importância aos 'meros fatos' (tendência perigosa quando levada ao extremo - veja-se a incapacidade dos estudantes de hoje de memorizar datas importantes) e concentrar-se no que ele passou a chamar de história cultural. Abriu-se aí um precedente que, apesar de muito criticado, conseguiu chegar até nós com boa vitalidade.

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