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domingo, 26 de setembro de 2010

Guia de tresleitura

No mês de setembro, o caso mais exemplar de charlatanismo jornalístico que encontrei foi no blog da The Economist. Leiam o texto do "M.S." aqui e o artigo do Dinesh D'Souza que gerou o comentário aqui. Como geralmente faço nessas ocasiões, li, por cortesia, a resposta antes de ler o artigo original. Assim eu deixo que o autor da resposta me mostre ele mesmo quais são os trechos do artigo original que ele considera dignos de serem citados sem que a minha leitura interfira no processo. Esse exercício me permite desconfiar que muita gente escreve respostas na esperança de que os leitores, já convencidos pela aparente razoabilidade da resposta, sintam-se desobrigados de ler o artigo original. De fato, na seção de comentários do blog da Economist há várias invectivas contra a simples necessidade de ler textos de 'alguém' como o D'Souza.

Logo no primeiro parágrafo, o M.S. conclui que o arrazoado de D'Souza não faz o menor sentido e cita uma conclusão a que este chega no vigésimo nono parágrafo de seu texto: If Obama shares his father's anticolonial crusade, that would explain why he wants people who are already paying close to 50% of their income in overall taxes to pay even more. Qualquer pessoa que não tenha lido o artigo de D'Souza concordaria que a relação entre anticolonialismo e tributação parece meio maluca. A frase seguinte do texto original, porém, é essa: The anticolonialist believes that since the rich have prospered at the expense of others, their wealth doesn't really belong to them; therefore whatever can be extracted from them is automatically just. Pode-se concordar ou discordar dessa visão do anticolonialismo, mas a essa altura não se pode mais alegar ignorância do nexo lógico da conclusão inicial. Antes de terminar o primeiro parágrafo de seu texto, M.S. dispara: Message to American billionaires and the people who write for them: many events and movements in world history did not revolve around marginal tax rates on rich people in the United States.

Como diria ele próprio, come again? Sugerir que a idéia de que qualquer acumulação de renda é injusta, e que portanto deve ser redistribuida, contribuiu para o crescimento desenfreado da tributação (especialmente sobre milionários) é então o mesmo que dizer que eventos da história mundial (provavelmente ele está se referindo ao anticolonialismo) giram em torno da tributação sobre milionários? Aqui o procedimento foi o seguinte: atribuir absurdidade, através da omissão de termos explicativos, a uma hipótese com que se pode discordar, mas que nada tem de absurda, e em seguida inverter sujeito e objeto da hipótese e atribuí-la novamente ao autor original. Só mesmo não tendo lido o artigo de D'Souza para não desistir dessa brincadeira após o primeiro parágrafo.

Mais adiante M.S. declara que entende perfeitamente como Barack Obama pensa, já que é assim que pensa a maioria dos que se dizem de centro-esquerda nos EUA. Isso nos leva a concluir que se qualquer grupo numeroso de americanos começar a morar em cima de bananeiras, M.S. entenderá perfeitamente como eles pensam.

No pouco espaço que lhe resta, M.S. ainda consegue (a) distorcer uma passagem do The Virtue of Prosperity, em que fica claro a qualquer leitor mediano que o D'Souza defende, sim, a igualdade de oportunidades -- the government is obliged to treat all citizens equally -- ao mesmo tempo em que enaltece as desigualdades de mérito e de inteligência; (b) tecer ilações levianas sobre a história da Índia e envolver a família de D'Souza na bagunça, apenas pra reconhecer mais tarde que era tudo brincadeirinha e que o conhecimento que D'Souza tem sobre o pai de Obama é comparável ao que ele mesmo tem sobre a história da Índia, isto é, nenhum; (c) perguntar aos céus por que, meu Deus, ainda lêem artigos como o de Dinesh D'Souza.

Já vi semelhante baixeza intelectual na mídia brasileira, mas não esperava coisa parecida na Economist. Por que, meu Deus, ainda lêem artigos como esse?

quinta-feira, 3 de junho de 2010

A demonização da carne







Excetuando as peças oficiais protagonizadas pelo próprio presidente ou por colegas de partido, as que vão acima são as piores que já vi na vida. Elas primam, como é bem perceptível, pela sutileza.

A primeira pergunta a ser feita é: por que escolheram a carne? Não há indício de que a produção ilegal de carne bovina no Brasil seja um flagelo comparável a outros que existem indubitavelmente: economia informal, corrupção, sonegação de impostos etc. O terceiro vídeo inclusive fala em sonegação fiscal, mas haverá mais sonegação no campo ou na indústria? As grandes movimentações de dinheiro são mais 'secretas' nas grandes fazendas de gado de corte ou nas grandes estatais brasileiras? Num país em que há muitos problemas, exige-se certo senso de prioridades; o que levou o ministério público a priorizar o problema das carnes? A minha resposta a essa primeira pergunta fica para o fim.

Em segundo lugar, choca, ou deveria chocar, o fato de o MP denegrir justamente o setor da economia em que o Brasil se destaca. O Brasil é o segundo maior produtor de carne bovina do mundo; o maior exportador do mundo. Das 10 empresas que mais exportaram no Brasil em 2008, 4 são de bens de consumo. A JBS, que lida principalmente com carne bovina, aparece em 22o. lugar, com valor de exportação superior a 20% do valor de exportação da Embraer, produtora de aviões quase exclusivamente destinados ao exterior (apareceu aí a Azul, a linha aérea brasileira que paradoxalmente compra aviões brasileiros!). Resta alguma dúvida de por que a balança comercial brasileira ainda pára em pé? Nos setores da economia em que tropeçamos, damos um jeito de responsabilizar maldade, opressão e legado estrangeiros; naqueles em que nos destacamos, cometemos suicídio publicitário. Seria só burrice?

Vejam que no segundo vídeo o sujeito fala em trabalho escravo. Sobre esse assunto fala a senadora Kátria Abreu (DEM-TO), presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA), nas páginas amarelas da Veja de algumas semanas atrás:
A Organização Internacional do Trabalho define o trabalho forçado como aquele feito sob armas, com proibição de ir e vir ou sem salário. Isso, sim, é trabalho escravo, e quem o pratica deve ir para a cadeia. O problema é que, pelas normas em vigor no Brasil, um beliche fora do padrão exigido pode levar o fazendeiro a responder por maus-tratos aos empregados. A NR-31 é uma punição à existência em si da propriedade privada no campo. (...) Imagine a seguinte situação: é hora do almoço, o trabalhador desce do trator, pega a marmita e decide comer sob uma árvore. Um fiscal pode enquadrar o fazendeiro por manter trabalho escravo simplesmente porque não providenciou uma tenda para o almoço do tratorista. Isso é bem diferente de chegar a uma fazenda e encontrar o pessoal todo comendo sob o sol inclemente. São duas situações diferentes. Mas elas provocam as mesmas punições. Isso confunde o pessoal do campo, que passa a se sentir sempre um fora da lei.
Sempre desconfiei que as condições de trabalho nas fazendas brasileiras fossem tão desconhecidas pelos denunciadores de plantão quanto por mim mesmo, até então um completo desinteressado no assunto. Em outro artigo, publicado no Estadão, a mesma senadora continua:
Em quase todos os casos, os enquadrados como escravagistas não são processados. E por um motivo simples: não o são. As autuações trabalhistas que apontam prática de trabalho escravo são insuficientes para levar o Ministério Público a oferecer denúncias pela prática de infrações criminais. O resultado é que, enquanto isso não ocorre, o produtor tachado de escravagista fica impedido de prosseguir em seu negócio e acaba falido ou tendo de abrir mão de sua propriedade. A agressão, como se vê, não é somente contra o grande proprietário, mas também contra a agricultura familiar, cuja defesa é o pretexto de que se valem os invasores e difamadores.
Então o MP, incapacitado de levar a cabo as denúncias contra colchões irregularmente fofos, faz o obséquio de espalhar em cadeia nacional que os grandes responsáveis pelo equilíbrio da balança comercial são em verdade ignominiosos senhores de escravos. Quem, afinal, terá melhores condições de descrever a real situação nas fazendas, o governo ou a CNA? Eis os números: "Os grupos móveis de fiscalização do MT percorreram, em sete anos - de 2003 até hoje -, 1.800 fazendas. A CNA, em 90 dias, percorreu mil fazendas e já está promovendo o circuito de retorno, para averiguar as providências tomadas."

Além de completamente inúteis (por apenas promoverem uma transferência de responsabilidades preguiçosa e cínica, do tipo 'já que não fazemos, faça você!, seja consciente!', sem que haja a preocupaçao de fornecer meios para tanto, e sem que haja uma justificativa de por que essa responsabilidade deveria ser nossa), esses anúncios oficiais traem o preconceito brasileiro contra o agronegócio, que se acentua e chega às raias da loucura quando esse agronegócio inclui, como não poderia deixar de fazê-lo, a produção de carnes.

O único aspecto meritório das peças publicitárias é o visual; recomendo assistir no mudo, abstraindo as legendas. E bom almoço.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Conservadorismo & Capitalismo

O fato de esquerdistas notórios serem avessos ao sistema capitalista (algo cada vez menos comum nos dias de hoje) criou a ilusão de uma parceria estratégica entre direita e capitalismo, ou, pior ainda, entre conservadorismo e capitalismo. É certo que direitistas devem ser capitalistas, mas também é certo que devem ser muito mais que isso. O capitalismo é um elemento necessário mas não suficiente, como diriam os matemáticos: é necessário porque não há alternativa; e, longe de ser suficiente, pode funcionar até como elemento destrutivo. Alguns dos elementos conservadores por excelência são muito comumente alienados na grande cidade; a dissolução de valores tradicionais é com frequência representada pela impessoalidade da megalópole e do burocrata dinheirista. Chega a surpreender que a Igreja, e que os críticos conservadores em geral, sejam ao menos levemente anti-capital? Não. Se é verdade que o capitalismo cria distinções úteis, é necessário algo que lhe dê sustentação, ou seremos vítimas de uma hierarquia que muda sempre. Russell Kirk a esse respeito:
This network of personal relationships and local decencies was brushed aside by steam, coal, the spinning jenny, the cotton gin, speedy transportation, and the other items in that catalogue of progress which school-children memorize. The Industrial Revolution seems to have been a response of mankind to the challenge of a swelling population: "Capitalism gave the world what it needed," Ludwig von Mises writes sturdily in his Human Action, "a higher standard of living for a steadily increasing number of people." But it turned the world inside out. Personal loyalties gave way to financial relationships. The wealthy man ceased to be magistrate and patron; he ceased to be neighbor to the poor man; he became a mass-man, very often, with no purpose in life but aggrandizement. He ceased to be conservative because he did not understand conservative norms, which cannot be instilled by mere logic -- a man must be steeped in them. The poor man ceased to feel that he had a decent place in the community; he became a social atom, starved for most emotions except envy and ennui, severed from true family-life and reduced to mere household-life, his old landmarks buried, his old faiths dissipated. Industrialism was a harder knock to conservatism than the books of the French egalitarians.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

A mentalidade conservadora

Se tivéssemos de aceitar os critérios que o Russell Kirk, no The Conservative Mind, estabelece pra identificar o imaginário conservador, seríamos forçados a admitir que popular o conservador não pode ser; não hoje. É certo que já houve tempos mais propícios, mas o conservador não está tão em descompasso com a realidade atual quanto gostariam seus detratores. Alguns desses últimos acreditam piamente que:

(i) O conservador não tem senso de humor;
(ii) O conservador tem uma vida social subdesenvolvida;
(iii) O conservadorismo é mais reação que ação, mais inerte que criativo;
(iv) O conservador age por instinto e é intelectualmente despreparado.

Nem seria necessário chafurdar a biografia de conservadores notórios pra verificar que o primeiro item é falso. À medida que os adágios conservadores perdem popularidade, ganha importância a maneira com que são repetidos, e o humor parece ser o artificio mais eficiente nesse processo de reinvenção. Nelson Rodrigues conseguia lamentar o hábito feminino de usar biquinis em plena luz do dia sem parecer um velho recalcado; Chesterton exaltava a coerência de um conto de fadas sem parecer infantil. Isso pode não ser engraçado, mas é bom humor.

Quanto à vida social: essa sim é uma noção engraçada, e eu não saberia explicá-la de outra forma que não a tendência natural que pessoas que pensam de maneira semelhante têm de se unir. A maioria dos meus amigos tende à direita e nem por isso bebe ou se diverte menos que o estritamente recomendável. Se você é esquerdista e acha que só esquerdistas têm capacidade de pular feito um condenado na balada, fique sabendo que o mau gosto não é privilégio de uma banda do espectro político. Os de bom gosto tampouco são reclusos: sentam num bar e ponderam quantos anjos cabem num copo de cerveja.

A primeira metade do terceiro item até faz sentido: o conservador desconfia de mudanças abruptas, o que não significa dizer que não reconheça a necessidade de mudanças. Uma desvantagem prática disso é que grandes talentos e mentes impetuosas tendem a encontrar alguma resistência no corpo conservador. A vantagem é que as mudanças, quando indispensáveis, são bem menos destrutivas quando supervisionadas por um conservador criativo. Isso nada tem a ver com inércia, como queria F. J. C. Hearnshaw -- It is commonly sufficient for practical purposes if conservatives, without saying anything, just sit and think, or even if they merely sit --, mas com conciliação de tempos incompatíveis.

O instinto, ou prejudice, realmente não costuma ser ignorado pelo bom conservador, mas daí a acreditá-lo intelectualmente pobre vai um grande salto. Um salto que, aliás, ignora as grandes inteligências que se tornaram, voluntariamente ou não, expoentes do conservadorismo: Edmund Burke, John Adams, S. T. Coleridge, J. H. Newman, Irving Babbitt, George Santayana, T. S. Eliot e o próprio Kirk. Há aqueles que enfatizam valores transcendentais (Burke, Kirk, Newman), outros que se concentram na esfera política (Adams), outros que valorizam a imaginação conservadora mais que tudo (Coleridge, Eliot) e outros que se ocupam principalmente da filosofia por trás da práxis política (Coleridge, Babbitt, Santayana). Já que parecem (e são) tão diferentes, o que os uniria a um núcluo comum? Kirk enumera alguns pontos:

(i) Belief in a transcendent order. Essa é uma condição com a qual Roger Scruton discordaria, e à qual Santayana e tantos outros expressamente não se adequam. Acontece muito de ela ser aceita numa versão adaptada, que consiste em admitir que a razão humana é insuficiente para abarcar toda a existência e que, se os mistérios não são explicáveis através de um plano divino, simplesmente não são explicáveis. Há aqui, porém, a convicção de que todo problema político é no fundo filosófico, e que todo problema filosófico é antes problema religioso.

(ii) Affection for the proliferating variety and mystery of human existence, as opposed to the narrowing uniformity, egalitarianism, and utilitarian aims of most radical systems. Aqui temos o que parece ser unanimidade entre conservadores: diferenças de mérito entre seres humanos existem e podem ser tão grandes quanto se queira imaginar. Num momento em que a tendência é uniformizar tudo (homens e mulheres, velhos e jovens, bons e maus), repetir esse truísmo conservador exige, e esse é o apelo de Kirk, a engenhosidade de uma criatividade conservadora, capaz de reabilitar obviedades rejeitadas.

(iii) Conviction that civilized society requires orders and classes, as against the notion of a "classless" society. Consequência direta de (ii): o nascimento, ou o mérito, ou o casamento, ou mais raramente a sorte, ou todos juntos, determinam que lugar na sociedade devemos ocupar. A supressão de qualquer tipo de ordem levaria -- numa objeção que é mais de ordem prática que de princípio -- ao predomínio de oligarquias, num regime em que todos são servos da igualdade.

(iv) Persuasion that freedom and property are closed link. Observação simples da realidade.

(v) Faith in prescription and distrust of "sophisters, calculators and economists". Relendo os quatro itens anteriores, percebo que não poucos dos chamados liberais ou libertários assentiriam completamente, sendo o primeiro item com muita probabilidade o mais disputado. Essa quinta condição representa outro ponto de divergência: o conservador desconfia dos sofistas mesmo quando (ou principalmente quando) ele diz ser o estandarte da ciência e da racionalidade. Os números dos melhores economistas podem ser enganosos; as abstrações de filantropos podem levar a ruínas bem concretas.

(vi) Recognition that change may not be salutary reform: hasty innovation may be a devouring conflagration, rather than a torch of progress. Society must alter, for prudent change is the means of social preservation; but a statesman must take Providence into his calculations, and a statesman's chief virtue, according to Plato and Burke, is prudence.

Se você simpatiza com os seis princípios enumerados acima e não usa tênis all-star, sinta-se bem-vindo ao clube.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Eles merecem

Há uns anos, fui malhado em sala de aula por dizer que cada povo tem o governante que merece. Nem sei quem disse isso pela primeira vez; vai que é ditado popular em algum lugar, de tão antigo. Está claro que não se pode responsabilizar um bebê iraniano de poucos anos pelo enpossamento de Ahmadinejad, mas, creio, entende-se bem o que o aforisma quer dizer. Essa relação de responsabilidade pode por vezes ser bem complicada, como o crescendo de anti-semitismo europeu que deu a uma figura como Hitler taxas apreciáveis de popularidade.

Às vezes ela nada tem de complicada. Escrevo isso porque vi hoje mesmo evidência adicional para a minha declaração de há uns anos. Trata-se de exemplo único, um tijolo num muro que, porém, já vai alto. Vejam:
Hoy con alegría revolucionaria constatamos como se desarrollan en nuestra America Latina esfuerzos y cristalizan iniciativas tendientes a buscar la unidad, el progreso socio-económico y la integración Latinoamericana como: el Mercosur, ALBA, Petrocaribe, Telesur, Banco del Sur, satélite Simon Bolivar y otros proyectos de ayuda mutua, cooperación y solidaridad. América Latina despertó, está de pie y marchando por senderos libertarios y socialista después de décadas de sojuzgamiento y dominación imperialista. Las hermanas república de: Bolivia, Ecuador, Brazil, Uruguay, Cuba, Nicaragua. Paraguay y con reservas y dudas Chile, entre otros, así como algunos países del Caribe cuentan con gobiernos progresistas que han empezado el deslinde, distanciamiento e incluso ruptura respecto a las políticas neoliberales, adoptando políticas nacionalistas y populares de defensa y rescate de los recursos y riquezas naturales y de reafirmación de su soberanía, planteándose en nuestro caso particular por el comandante presidente Hugo Chávez como el denominado socialismo del siglo XXI, que comparte principios fundamentales con el socialismo clásico, en especial la idea de la supremacía del ser humano y de su trabajo sobre el capital.
O trecho acima foi escrito por um venezuelano que fez intercâmbio nos EUA junto comigo, em 2003. É meritório que tenha ao menos ido visitar a matriz do imperialismo opressor, mas é certo que não aprendeu nada. Se não me recordo mal, o sujeito não era de todo desagradável, apesar daquele entusiasmo meio bobo típico de latinos. Guardada a minha compaixão pelos venezuelanos da oposição, que obviamente não são poucos, apenas digo: eles merecem.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Um velho conservador

A figura de António Sousa Homem é, de longe, a que mais me diverte dentre todas as figuras divertidas que a blogosfera nos proporciona. Segundo consta, acaba de completar seus oitenta e nove anos e habita calmamente o 'eremitério' de Moledo, no coração do Minho. É visitado por irmãos e sobrinhos e, por opção bem calculada, já não pode compreendê-los tão bem. O interlocutor usual de Sousa Homem são a própria memória e as sombras que daí retira: o velho doutor Homem, seu pai; seu avô; Tio Alberto; Tia Benedita. Maria Luisa, uma sobrinha, de vez em quando aparece como que para atestar a transitoriedade dos tempos.

Sousa Homem é um resignado ('conheço esses caminhos por razões médicas, tentando aliviar os pulmões e despertar neles o desejo de continuarem a respirar'), e isso já seria suficiente pra fazer muita gente franzir o sobrolho. De fato,
Desiludi uns e diverti outros. Expliquei aos meus sobrinhos que não, que nunca tive uma adolescência revolucionária e barbuda. Há cinquenta anos eu esperava da vida o que ainda hoje acho decente esperar-se: um perfume de mimosas numa estrada do Minho. Era um conservador e sou um conservador, um hibisco que muda de folha na altura certa e que aceita a dádiva da fortuna e da metereologia.
Desiludiram-se os sobrinhos, 'que preferiam ver-me como um velho anarquista que tivesse passado o melhor tempo da sua juventude colocando bombas à porta de bancos, ou assaltando a tradição da família para que me declarasse democrata e republicano'. Desiludiram-se as irmãs, que não viram as paixões do irmão mais velho, também elas transitórias, concretizarem-se em matrimônio. Mas restaram os livros, e os contemporâneos que já partiram.

Um desses livros é o The Anatomy of Melancholy, de Robert Burn, herdado do velho doutor Homem, seu pai. Sousa Homem parece saber muito sobre a melancolia, mas não vê nisso motivo para desespero ('cada dia que acrescento à minha idade é um dia para agradecer à providência'); longe disso, entende, assim como seu pai, que os sacrifícios que somos forçados a fazer servem como bálsamo para a juventude. Eis aí a melhor resposta para bombas em portas de bancos: o encolher de ombros de quem tem uma família para cuidar.

Muitos devem achar, a exemplo de sua irmã mais nova, que Sousa Homem simplesmente se recusou a dobrar o século ('ela tem a impressão de que eu pertenço, não a este mundo, mas aos calendários que vão passando de moda -- gosto da imagem e não me ofendo), ou que, assim como o condenado de Nick Cave, he goes shuffling out of life, just to hide in death awhile. Mas Sousa Homem não se esconde em lugar nenhum, a menos que se considere o eremitério de Moledo, no coração do Minho, um esconderijo.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Post sobre o jornalismo brasileiro

O conservador brasileiro, não sem certa razão, sempre se refere com um nojinho incontido às peripécias que enchem os jornais. Muito mais edificante falar sobre poesia, religião ou Monica Bellucci. Há aí um problema de prioridades: como disse o Pereira Coutinho numa entrevista recente, discutir detalhes teológicos no país do mensalão é como querer dançar valsa na tempestade, ou algo assim. Ouçamos o filósofo Paulo Betti: às vezes é preciso sujar as mãos.

A situação da Veja é particularmente irritante. Se existe uma revista que deve inspirar preocupação, essa revista é a Veja, que é a mais lida. E quem mais escreve nela, pelo menos nas últimas edições, é o Andre Petry: tem uma coluna e é responsável pelas matérias sobre as eleições nos EUA. Vejam as bobagens que o sujeito é capaz de escrever: O que mais provocou a simpatia mundial por Obama, conforme se lê nas pesquisas feitas em dezenas de países, é um conjunto de características para as quais Obama jamais chamou atenção porque espanta o voto do americano médio. A saber: sua negritude, sua urbanidade, seu traquejo político, sua formação acadêmica de elite.

Petry garante que formação acadêmica de elite espanta o voto do americano médio. Agora me ajudem com a contagem de presidentes americanos que frequentaram Harvard: John Adams e seu filho, John Quincy Adams; Theodore Roosevelt; Franklin Roosevelt; John Kennedy. Esses 5 são bem conhecidos; uma googlada rápida fornece o nome de mais dois, Rutherford Hayes e o próprio George W. Bush (master's degree). Em Princeton formaram-se dois, James Madison e Woodrow Wilson. Em Stanford, o engenheiro Hoover. Em Yale, Bush pai, Bush filho e Taft. Um em Goergetown, um em Duke, quatro na William & Mary College, um em Columbia, um em Dickinson, um em Williams. Traquejo político também é impopular, segundo Petry. Não faço idéia de onde ele tirou isso. Então o povo americano prefere os mais burocráticos, os mais enrolados?

Petry repete religiosamente os lugares-comuns mais batidos -- e mais desacreditados por quem se deu ao trabalho de estudar -- sobre a história dos EUA, como afirmar que o New Deal salvou a economia americana pós-29, que a administração de Harding (1921-23) foi a mais corrupta, que Nixon abusou dos poderes de presidente mais que seus antecessores, que quem se opunha ao movimento aboliciosta era necessariamente racista e por aí vai. Ao fazer um balanço do governo de W Bush, lembra displicentemente que Bush chegou dizendo que faria um governo "para unir, não para dividir", e agora entrega um país com duas guerras (Iraque e Afeganistão), um déficit monumental (já na casa do trilhão de dólares) e uma economia em frangalhos (a pior crise desde a II Guerra Mundial), como se a crise econômica fosse de responsabilidade dele e como se a decisão de entrar numa guerra não passasse de mero capricho pessoal (se perguntado, Petry provavelmente responderia que sim, que não passa de mero capricho pessoal).

Num quadro com as colunas 'O mundo pensa que... / Mas os Estados Unidos pensam que...', Petry mostra que não deveria se arriscar a falar por uma nação que ele desconhece, ou conhece apenas através do NY Times: ... o eleito merece todo o entusiasmo de que é objeto, como é natural em qualquer eleitorado do mundo. Torcem para que Obama resolva os problemas (no kidding?), mas não há nenhum sinal (nem procissão, nem comoções públicas, nem pedidos de benção) de que o julguem portador de superpoderes... É de surpreender, então, que eleitores conservadores americanos tenham inventado os epítetos the Anointed One, the Chosen One etc. para Obama -- certamente Petry não considera (mas sabe-se lá, né) desprezível a parcela conservadora do eleitorado americano.

É natural ver simplificações numa revista cujos artigos raramente ultrapassam as duas páginas; pode-se sempre falar em didatismo ou algo que o valha. Difícil de entender é que noções tão bobas -- bobas até entre setores da esquerda americana, principalmente agora que já explodiram os primeiros escandândalos da era Obama -- ocupem tanto espaço no semanário mais lido do país. Quando é na Veja o Reinaldo Azevedo não reclama...

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O Papa Bento XVI é um “des-reformador” e como todos os conservadores, ele quer que tudo esteja igual, que não haja marolas, nem discordâncias, nem heresias. E aí comete gafes papais. O trecho é do Arnaldo Jabor. Segundo Jabor, melhor seria se o papa admitisse heresias; só assim pra evitar 'gafes papais'. Um conselheiro assim é exatamente o que o Vaticano precisava.

domingo, 1 de junho de 2008

Marcha da Maconha

É, eu sei que estou bem um mês atrasado. Na verdade eu nem pretendia comentar o assunto não fosse uma série de pequenas coincidências. Por ocasião do fim do Wunderblogs, resolvi conhecer alguns dos blogs de lá, já que só conhecia o do Alexandre. Visitei primeiro o do FDR, talvez na esperança inconsciente de ver o Delano sendo malhado publicamente. Não encontrei nada do tipo, mas tem muita coisa interessante por lá. Esse post, porém, chamou minha atenção por afirmar que Reinaldão Azevedo acha que quem defende a legalização das drogas devia ser preso. Depois fui conhecer o blog do Filthy McNasty, de que também gostei, e que também traz um post sobre o assunto: esse aqui. McNasty está de acordo com FDR e ainda comenta a respeito da idéia de uma lei contra a apologia ao crime.

Fui atrás de ler os posts do Reinaldo Azevedo quase certo de que ele tinha exagerado mesmo (já tive a mesma impressão em outras ocasiões). Não vi exagero nenhum. O Azevedo não acha que quem defende a legalização das drogas deve ser preso; ele acha que quem vai às ruas incentivando o consumo de drogas deve ser preso. Eu também acho, e parece que a maioria das famílias brasileiras acha o mesmo. Tanto FDR quanto McNasty vêem nisso cerceamento da liberdade de expressão, mas quem disse que a liberdade de expressão não deve ser regulada? O sujeito que entra na C&A pelado pra protestar contra os altos preços das roupas deve ser tolerado? O maconheiro que passa na minha rua cantando as maravilhas da maconha deve ser tolerado? No meu entender, não.

Espero que isso não pareça um simples jogo de palavras: ser a favor da legalização das drogas é diferente de participar de uma passeata. Escrever um artigo expondo dados favoráveis à legalização (assim como fizeram Milton Friedman e inúmeros outros) é diferente de empunhar cartazes melodramáticos. Convenhamos, o ônus da prova está do lado de lá da cerca legal. Ninguém mais que os defensores da legalização tem o dever de informar com cuidado a população. No site da Marcha da Maconha, porém, não consigo encontrar uma única nota sobre os danos que a erva pode causar à saúde de quem fuma. Quando confrontam números, é de maneira leviana (no ritmo do post passado, fico sem saber se se trata de burrice ou de má-fé): por exemplo, ao lembrar que o álcool ou o tabaco matam mais que a maconha ou a cocaína. Ora, se o status legal de uma substância é tão irrelevante a ponto de não influir sobre o número de consumidores (é essa a resposta que recebemos ao lembrar que o tabaco mata mais porque é mais consumido), por que organizar uma passeata pela legalização?

McNasty declara finalmente que a lei [contra a apologia ao crime] essencialmente cerceia o direito de o cidadão dizer o que pensa. Na verdade ela cerceia o direito de o cidadão dizer o que pensa da maneira que ele bem entender. Não sei de onde surgiu essa idéia maluca segundo a qual a liberdade de expressão deve sobrepujar todo o resto. Isso corresponde a dizer que idéias, ou a maneira com que são apresentadas, não têm consequências, ou, se têm, devem ser desprezadas frente aos caprichos do opinador. Até os liberais mais exaltados estavam cientes do equilíbrio precário entre a liberdade individual e a ordem coletiva. Como diria Richard Weaver, ideas have consequences, e as consequências no caso da legalização das drogas estão longe de ser desprezíveis.

sábado, 31 de maio de 2008

Como e Por Que Discutir

Diferentemente do que pensava Schopenahuer, a maior motivação pra participar de um debate não é a perspectiva de vencê-lo, é a perspectiva de ver seu oponente derrotado. Pode parecer a mesma coisa, mas às vezes a necessidade de desacreditar a opinião do outro é bem mais premente que fazer prevalecer a sua própria. Se não me engano foi Oscar Wilde (discordo dele quase sempre, mas era um sujeito inteligente) quem disse que é a insipidez do argumento alheio que mantém a discussão viva.

É claro que Wilde queria dizer (ou ao menos é o que ele queria que entendêssemos) que uma opinião insípida, ainda que verdadeira, deve ser combatida. Isso, obviamente, é bobagem de quem quer soar bacaninha. É preciso ter disciplina de espírito até pra concordar com o ministro Eros Grau, ou com o ministro Ricardo Lewandowski. Ambos vêem o óbvio na questão da pesquisa com células-tronco: a arrogância da ciência. É pena que apontem uma origem tão esdrúxula pra essa arrogância (ela seria um véu para acobertar os interesses do, brr, Mercado). A burrice analítica, porém, não compromete a primeira impressão, essa sim completamente verdadeira.

A frase do Wilde é aproveitável quando é usada no sentido do Teorema da Autoridade Invertida, de que já falei aqui. A tacanhice da argumentação alheia é apenas indício de falsidade. Ufa, Fulano discorda de mim. Quem nunca teve esse tipo de alívio?

É por essas e outras que sempre senti falta de uma interpretação (brr) psicológica para o debate. Pode parecer ingenuidade, mas ainda acredito na esperança de aprendizado (aliás, se, como queria Schopenhauer, todo debate tem como objetivo a 'vitória', por que o dele seria uma exceção?). Minha experiência pessoal parece confirmar essa esperança: nunca mudei de idéia sobre questões fundamentais lendo livros; os livros só sedimentaram de vez a mudança. O ser humano está sempre seguindo indícios mais ou menos claros, e por algum motivo eles aparecem com mais frequência numa conversa com o vizinho do que num tratado de teologia. A única exceção que consigo pensar agora é o Orthodoxy, do Chesterton, mas bem que esse livro parece a cópia de um grande debate, não?

É graças a essa ingenuidade latente (de que me orgulho) que não posso fugir à pergunta: por que Fulano acredita nisso? Ignorância, má-fé ou eu que estou errado? Quando Sam Harris rejeita o argumento da contingência de Leibniz com um mero 'isso é fugir do problema', podemos pensar em ignorância e má-fé simultaneamente. Ignorância porque muita gente realmente acha que recorrer à única solução possível de um problema é fugir do problema. Isso corresponde a dizer que, sendo os catetos de um triângulo retângulo 3 e 4, concluir que a hipotenusa vale 5 representa uma fuga. E má-fé porque Harris lembra triunfante que o argumento não prova a existência do Deus cristão, quando é notório que essa nunca foi a intenção do argumento. Se bem que, pensando bem, talvez ele não saiba disso. Viram que complicado!

O problema dos comunistas não é menos intrigante. Na época de Hayek era mais plausível acreditar que os defensores do socialismo desistiriam da idéia assim que enxergassem suas consequências. O próprio Hayek sugere isso inúmeras vezes no Road to Serfdom. Mas e hoje? Como diferençar os meramente tapados dos genuinamente picaretas? Os casos extremos são de análise fácil, mas a banda intermediária, bem difusa, está longe de poder ser desprezada. Vai que há almas bem intencionadas lá por dentro. Eles precisam da nossa paciência.

domingo, 25 de maio de 2008

Assalto na Dutra

Bom, preferia não ter de ser assaltado pra poder verificar, ainda que pra um espaço amostral extremamente exíguo, uma dessas teses que gostamos de esfregar na cara dos outros numa mesa de bar. A primeira tese é a de que o povo (na acepção mais amorfa e generalizante possível) é em essência direitista, o que equivale a dizer que é natural ser de direita assim como é natural perder os dentes de leite, ficar calvo ou interessar-se pelo sexo oposto. A segunda tese, meio óbvia e decorrente da primeira, é a de que o povo brasileiro não sabe se expressar politicamente. Se soubesse, teríamos pelo menos um partido de direita.

Fui assaltado hoje pela manhã voltando de São Paulo pra São José dos Campos, no mesmo ônibus que sempre tomo. O sujeito subiu num dos pontos do caminho (aliás, por que é mesmo que esses ônibus de linha param nos pontos?) e sacou uma arma que eu gostaria de poder descrever em detalhes, mas não conheço nada a respeito. Vovós suspirando, crianças chorando e todo mundo tentando esconder objetos de valor. Consegui esconder minhas coisas à exceção do telefone celular, que resolvi meter no saco estendido diante de mim pra não levantar suspeitas (meninas, não adianta ligar, não vou poder atender). As imprecações do assaltante são as mesmas que vemos nas novelas: 'Motorista, sem gracinhas ou eu passo chumbo'; 'Quem esconder dinheiro leva bala' etc.

Mas esse assaltante era diferente, ao menos dos poucos que tive a infeliz oportunidade de observar em ação. Estava nervoso demais, falava alto demais. Se tivesse tido um pouco mais de paciência poderia ter levado vários outros celulares, relógios, iPods e alianças sem risco adicional. Saiu apressado, meio envergonhado. Já na porta, pronto pra descer, virou e disse:

-- Não sou ladrão. Meu filho está com câncer e não posso pagar o tratamento. Vocês me perdoem. Me perdoem e fiquem com Deus.

Mentira? É até provável, apesar de que o sujeito poderia ter simplesmente ido embora calado. A reação dos passageiros, porém, pareceu unânime: era mentira e, mesmo que não fosse, não justificava o assalto. Ônibus de linha não deveria parar nos pontos da estrada. E o pessoal que mora longe da rodoviária? Pega o circular antes; gasta mais mas garante a segurança de todos. O que segura a sociedade, disse outro, é a família; um familiar de cabeça fria poderia ter aconselhado o pai desesperado e evitado o assalto. Não se deve julgar, mas que está errado, está. Essa interpretação do crime surgiu naturalmente, sem qualquer esforço analítico. Por que ela não sai de dentro do ônibus?

sábado, 16 de fevereiro de 2008

Memória Vermelha (2)

Em entrevista à finada Primeira Leitura, Contardo Calligaris afirmava que seu pai (ou seu avô, não lembro mais) decidiu opor-se aos fascistas em Itália sem para tanto tornar-se comunista, como era o costume, porque os comunistas eram muito 'vulgares', ou algo do tipo.

Realmente o estudante de hoje, a não ser que não leia, não tem como justificar um fascínio pelo comunismo que vá alem de seus 18 anos; qualquer livrariazinha de esquina já traz pilhas de biografias descendo o pau em Stalin, Guevara, Mao etc. Mas e no começo do século passado, quando os regimes comunistas ainda não tinham perpetrado seus respectivos genocídios, como é que o cidadão médio, desinteressado em política, fazia pra afastar a idéia nefasta? Por uma sensibilidade estética. O pai do Calligaris que o diga.

Parece meio surpreendente, então, que Graciliano Ramos, tão atento a sutilezas estilísticas, tenha sido um comuna. Tudo bem que jamais chegou a fazer parte do PC, mas isso foi graças ao seu temperamento, não a convicções ideológicas. De fato, no Memórias do Cárcere ele chega a dizer coisas como
Não me repugnava a idéia de fuzilar um proprietário por ser proprietário. Era razoável que a propriedade me castigasse as intenções.
Essa mania tosca, estilisticamente deplorável, de dar vida a substantivos como 'propriedade' ou 'capital' (parece que estamos lendo um jornalzinho marxista: 'a greve dos trabalhadores foi debelada, assim como queria o Capital') já deveria ser suficiente pra afastar qualquer escritor decente. O problema é que Graciliano, diferentemente do Calligaris-pai, parece ter uma visão binária das coisas: impossível opor-se ao fascismo tupinambá senão através do comunismo tupinambá. Aliar-se aos comunistas, até admirar essa gente, passa a ser visto como obrigação moral, e não como o que realmente é antes de mais nada: um gravíssimo erro de estilo.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Memória Vermelha (1)

Não caluniemos o nosso pequenino fascismo tupinambá: se o fizermos, perderemos qualquer vestígio de autoridade e, quando formos verazes, ninguém nos dará crédito. De fato ele não nos impediu escrever. Apenas nos suprimiu o desejo de entregar-nos a esse exercício.
Na edição que tenho em mãos (Record, 2004) do primeiro volume das Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos, há um prefácio bem desagradável, daqueles que muito provavelmente nem o autor do livro consentiria ver publicado, escrito por Nelson Werneck Sodré. Primeiro porque é escancaradamente hagiográfico. Segundo porque, a despeito do conselho de Graciliano citado acima, o fascismo tupinambá é nele pintado com cores exageradas e odientas.

A verdade é que a imagem Graciliano Ramos sai, pelas mãos do mesmo Graciliano, bastante acanalhada desse livro. Curioso isso, já que o tipo de sinceridade que aqui encontramos (a vida em presídios leva a episódios tão constrangedores que somente a proteção da tumba -- o livro é póstumo -- é capaz de nos animar a revelá-los) é sinal de grandeza de caráter. Sem dúvida que é. Ocorre que o estilo do Graciliano, já velho conhecido nosso, força-o a desrespeitar, também ele, seu próprio conselho. Ele tem uma inteligência que poderíamos chamar episódica: pequenos detalhes, sejam gestos, palavras, odores etc., aparentemente desimportantes, são comentados detidamente, enchem capítulos inteiros. A narrativa flui normalmente até que um pequeno incidente prende toda a atenção do escritor; há como que uma suspenção epifânica. Como observava Alvaro Lins, o tempo narrativo de Graciliano Ramos é adulterado. A promessa enunciada logo no comecinho é cumprida à risca:
Posso andar para a direita e para a esquerda como um vagabundo, deter-me em longas paradas, saltar passagens desprovidas de interesse, passear, correr, voltar a lugares conhecidos. Omitirei acontecimentos essenciais ou mencioná-los-ei de relance, como se os enxergasse pelos vidros pequenos de um binóculo; ampliarei insignificâncias, repeti-las-ei até cansar, se isto me parecer conveniente.
Essa técnica funciona às maravilhas em romances como Angústia, em que o narrador-protagonista fica assim livre pra enfileirar suas obsessões e delírios. Aqui a coisa é aborrecida porque dá ares de onipotência àquilo mesmo que ele desejava não exagerar, o fascismo tupinambá. Impossível ignorar que, por não se tratar de ficção, conhecemos os nomes dos bois, e a possibilidade de reduzir boa ficção a panfleto político é premente e desconcertante.

Não há, é certo, ficção. E por mais que Graciliano se esforce para retratar com justeza seus algozes, as linhas sofridas, minguadas, como que espremidas do ritmo confessadamente lento do escritor, elevam as peregrinações do preso a um martírio quase que insuportável ao leitor. Acompanhamos enojados as perambulações pelo porão fétido do Manaus, sentimos as picadas de percevejos escondidos num catre duro, o cheiro nauseabundo da ração macilenta etc. Essas temeridades, graças ao talento do narrador, se multiplicam, avultam, ganham proporções impensáveis, instransponíveis. O órgão perpetrador das iniquidades cresce proporcionalmente, e o preso (lamentamos tanto por saber seu nome!) sai arrasado, acanalhado.

Eis aí: o ótimo estilo de Graciliano Ramos lhe prestou (a ele e a nós) um grande desserviço.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Diálogos Razoáveis (3)

-- A administração Lula foi a mais corrupta da história do Brasil.

-- Administrações anteriores foram tão corruptas quanto (ou até mais que) a atual, acontece que delas nós não recebemos notícia.

-- Se nós não recebemos notícia, como você ficou sabendo?

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Ennui ou Um Romance Revolucionário

Já tiveram a sensação de estar lendo o pior livro possível para um determinado momento? Foi o que senti durante a última semana inteira, semana penosamente dedicada à leitura das 520 páginas do Le Rouge et le Noir, de Marie-Henri Beyle, vulgo Stendhal. Li-o na esperança de encontrar algo da glória napoleônica, de heroísmo militar em geral, ou pelo menos da piedade do mais alto escalão eclesiástico. Quanta ingenuidade! De fato, Julien Sorel, filho de carpinteiro, é obcecado por Napoleão e procura seguir-lhe os passos, da miséria à consagração universal, e, apesar de conseguir ascender socialmente, fá-lo de maneira a ser comentado em cafés e bailes parisienses, mas nunca em livros de história. O que poderia ser pior que small talk francês para quem anseia por bravura medieval e querelas teológicas?

Le Rouge et le Noir é um daqueles livros a que devemos certa reverência antes mesmo de começarmos a lê-lo. Ele é cheio de pioneirismos importantinhos, como dizer que o romance é um espelho da sociedade, e que se a imagem daí resultante nos parece aviltante é culpa da sociedade, não do romancista etc. Há também aquelas alusões bem pouco veladas, observação obrigatória em rodas de leitura de velhinhas hiperativas, do tipo fazer com que o social climber Sorel tenha de subir escadas para entrar no quarto de suas amantes. Já se pode até imaginar possíveis títulos de ensaios sobre o livro: Stendhal's Subtle Imagery: Making Money Through the Roof of the Night ou A Choice of Ladders: Either Social or Naughty. É claro que esses detalhes só soam ridículos porque a paródia é intencionalmente ridícula, mas ela serve pra dar uma idéia do meu drama pessoal.

Por que, afinal, tanta antipatia? Por que tanto ennui, como diriam os franceses? Primeiro porque o livro é francês. Pior, trata da alta sociedade francesa. Antes que a patrulha esquerdopata venha sugerir que é porque Stendhal, Sorel etc. eram liberals, defendo-me com o 'revisionismo' sempre indispensável nesses horas: Sorel despreza, ou ao menos diz desprezar, a aristocracia e a religião. Mas eis que, durante todo o livro, identifica-se somente com aristocratas e figuras eclesiásticas, e não por interesse. Admira extasiado (e inclusive faz questão de participar) do desfile em homenagem ao Rei de --. Mal consegue disfarçar a reverência que lhe surge espontaneamente ao contemplar a plácida figura do bispo de Agde. Declara-se entorpecido com os ritos, preces e canções que presencia; pressente o que poderíamos chamar cheiro da eternidade. É claro que tudo isso trai um caráter afeito ao grandioso, coisa que um orgulho plebeu tão forte já deixava entrever desde muito cedo.

Mas, infelizmente para nós, não há nada de grandioso nas peripécias de Sorel, apesar de seu oportunismo ser realmente exemplar. Refiro-me em particular ao romance com Mathilde, filha do marquês de la Mole, para quem Sorel trabalha como secretário. Lembram-se daquele filme Closer, em que os casais formam-se apenas para ruir depois de 5 minutos? É mais ou menos desse tipo a inconstância de Mathilde: julga-se apaixonada pelo nobre plebeu, mas, ao perceber que o possui completamente, enjoa e cai fora. Mas eis que Sorel, seguindo o conselho de um amigo especialista em relacionamentos, joga atenções para outra e, ó surpresa, lá está Mathilde apaixonada novamente.

O que seria isso senão uma ode, intencional ou não (provavelmente não), ao conservadorismo? Sorel pergunta a Mathilde: que garantia tem de que não será enjeitado de novo dentro em breve? Nenhuma, é claro. Isso lembra a observação de Chesterton segundo a qual todo bom revolucionário é em última análise também conservador: jamais conseguirá pintar o mundo inteiro de azul se amanhã já tiver mudado de idéia e preferir o vermelho. Muito pelo contrário, tem de querer sempre o azul, e com uma insistência obstinada. A mudança, longe de ser o aspecto mais importante da realidade, tem o péssimo hábito de degradar aquilo que foi erguido graças a um esforço de conservação. Muitas das virtudes que nos são mais caras não são muito mais que um esforço desse tipo. Ou alguém já ouviu falar em lealdade esporádica?

Já ficou claro que num embate entre Parmênides e Heráclito fico com Parmênides all the way. Graças a Aristóteles, também sabemos que mudanças não só existem como podem ser (e muitas vezes são) importantes. Quanto me perguntam se sou conservador, respondo: é claro, quem não gostaria de conservar o que é bom e de melhorar o que pode ser melhorado? Edmund Burke descrevia seu ideal de homem político precisamente assim: A disposition to preserve, and an ability to improve.

quarta-feira, 31 de outubro de 2007

A Força Irresistível da Lógica

Numa palestra (chamada Individualism: True and False) dada na University College de Dublin, em 17 de dezembro de 1945, F. A. Hayek, constrangido com o mal emprego do termo 'individualismo', resolveu estabelecer uma divisória definitiva entre o que ele entendia por individualismos 'verdadeiro' e 'falso'. Uma das características que facilitariam essa distinção seria o credo, por parte dos falsos individualistas, no predomínio absoluto da razão humana no processo de construção da nossa cultura política. Os verdadeiros individualistas (Hayek refere-se principalmente a Edmund Burke e Alexis de Tocqueville), por outro lado, reconhecem que muito desse processo advém de tendências fora do controle e até incompreensíveis para um indivíduo isolado num determinado período histórico. O verdadeiro individualismo, então, não é aquele que atribui ao indivíduo um conhecimento transcendental das consequências de suas próprias atitudes, mas apenas aquele que acredita ser o indivíduo o mais indicado para aproximar-se desse conhecimento, quando e se ele for possível.

A princípio pode parecer estranho (principalmente para o estudante brasileiro, intoxicado desde muito cedo com odes à Ilustração) que logo um economista se posicione contra o monopólio da razão. Não é que Hayek não goste da razão ou que prefira deixar tudo ao deus-dará; apenas gostaria de impor-lhe os limites cabíveis e, diga-se, inescapáveis. Ele argumenta que o individualismo racionalista -- de um Rousseau, por exemplo -- tende apenas a práticas socialistas já que, se existe mesmo um método racional indiscutível para organizar nossas vidas, alguém vai ter de ser 'escolhido' para divisá-lo e aplicá-lo à revelia das inevitáveis discordâncias. Nesse sentido, o racionalismo é nada mais que um convite à revolução, que parte do pressuposto de que alguém suficientemente inteligente e 'racional' seria capaz de transformar dum só golpe todas as nossas instituições.

Tendo isso em mente, não fica muito difícil entender por que o triunfo da razão humana se manifesta com clareza exemplar nos movimentos totalitários do século passado, desbancando até os tão exaltados avanços científicos e tecnológicos. Hannah Arendt (1906-1975) não cansa de enfatizá-lo em sua genealogia do totalitarismo, The Origins of Totalitarianism. É curioso que figuras como Hitler e Stalin, sobre quem tanto já foi escrito, ainda figurem no imaginário popular como ditadores intempestivos e dados a mudanças repentinas de planos; seriam mentes imprevisíveis, irracionais, tresloucadas. Parece que as picuinhas domiciliares ganharam mais atenção que os vastos e meticulosos planos de dominação, engendrados e avançados com uma coerência somente encontrável em tratados de lógica:
According to Stalin, neither the idea nor the oratory but "the irresistible force of logic thoroughly overpowered Lenin's audience." The power, which Marx thought was born when the idea seized the masses, was discovered to reside, not in the idea itself, but in its logical process which "like a mighty tentacle seizes you on all sides as in a vise and from whose grip you are powerless to tear youself away; you must either surrender or make up your mind to utter defeat."
A capacidade de criar um mundo fictício e coerente em si mesmo nada tem de irracionalismo; muito pelo contrário, a abstração necessária para compor entes lógicos sem que eles existam no mundo sensível é um exercício de razão pura; aqui não há conhecimento empírico para nos auxiliar. Triângulos perfeitos não existem nem nunca existiram, mas ninguém nega a razoabilidade das definições de ângulo interno, comprimento de lado etc. e das consequências que daí advêm. Os mais incrédulos poderiam perguntar: como justificar logicamente a necessidade que o Partido tinha de acusar e punir inocentes que muitas vezes podiam provar a própria inocência? Certamente, dirão, temos aí um exemplo de vontade de poder desenfreada, uma paranóia injustificável em termos racionais. Também é comum, pra reforçar esse argumento, citar algumas esquisitices dos últimos anos de Stalin, como mandar um bedel provar sua comida por medo de envenenamento ou achar que havia algum gás letal entrando pelas frestas de seu escritório. Ou talvez o processo seja um pouco mais calculado, como sugerido por Arendt:
We are all agreed on the premise that history is a struggle of classes and on the role of the party in its conduct. You know therefore that, historically speaking, the party is always right (in the words of Trotsky: "We can only be right with and by the party, for history has provided no other way of being in the right."). At this historical moment, that is in accordance with the law of history, certain crimes are due to be commited which the Party, knowing the law of history, must punish. For these crimes, the Party needs criminals; it may be that the party, though knowing the crimes, does not quite know the criminals; more important than to be sure about the criminals is to punish the crimes, because without such punishment, History will not be advanced but may even be hindered in its course. You, therefore, either have commited the crimes or have been called by the party to play the role of the criminal -- in either case, you have objectively become an enemy of the Party. If you don't confess, you cease to help History through the Party, and have become a real enemy.
Não chega a surpreender, então, que membros da SS mantivessem lealdade irrestrita ao Reich mesmo quando descobriam que eram, por algum motivo, inimigos do Reich. Não faria sentido -- não seria lógico -- questionar a autoridade do Partido simplesmente porque circunstâncias históricas os colocaram do lado dos adversários. O encadeamento lógico do comportamento totalitário é tão rigoroso que não se pode escapar de um mundo de finalismos: todo passo, todo gesto ou palavra tem um objetivo final grandioso, o nec plus ultra da condição humana na Terra. Todos eles são inteligíveis e seu impacto pode ser cuidadosamente aferido graças à superior inteligência do novo homem. Heinrich Himmler, chefe da SS, "quite aptly defined the SS member as the new type of man who under no circumstances will ever do 'a thing for its own sake'".

Hitler, Lenin, Stalin etc., esses prodígios da lógica, acabaram ficando conhecidos por terem um raciocínio lógico pouco desenvolvido, essa que para os racionalistas é a maior das desgraças. De qualquer maneira eles devem ser lembrados como testemunhos do que a razão humana é capaz de alcançar (ou destruir). Nesse ponto acho que estamos todos de acordo: não é pouca coisa.

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

O Óbvio Ululante

Quando Milton Friedman (1912-2006) escreveu, com o auxílio de sua mulher Rose, Capitalism and Freedom (1962), ainda havia nos EUA quem duvidasse seriamente da capacidade que o mercado privado tem de dinamizar a economia mundial. No prefácio para a edição de 1982 do livro, com Ronald Reagan eleito presidente no ano anterior, já se podia falar em uma mudança generalizada de mentalidade. No prefácio para a edição de 2002, Friedman já podia declarar sem muita falsa modéstia que suas idéias libertárias, tão violentamente combatidas em 62, tinham ascendido ao nível de teoria oficial.

Friedman costumava dizer que o colapso da URSS em particular e do bloco comunista em geral fez mais que qualquer livro seu para desiludir os adeptos da economia planificada. O fato é que, apesar de hoje a economia coletivista não merecer crédito de ninguém (à exceção de Fidel Castro, Hugo Chávez e uns outros tantos luminares da inteligência mundial), a intervenção estatal na economia dos EUA ainda chega a quase 40% (contra uns 15% antes da WWII) do PIB. Como dizia o próprio Friedman, a batalha intelectual pode até ter sido ganha, mas, na prática, o paternalismo estatal ainda é uma realidade com poucas chances de ser transformada.

O livro parte do pressuposto da escola austríaca de economia (principalmente Hayek, que é citado com frequência), repetido aqui no Brasil por Roberto Campos, de que não pode haver liberdade política sem liberdade econômica. O caminho inverso, liberdade econômica sem liberdade política, é até possível (dá-nos exemplo disso a China), apesar de que a influência da primeira tende a forçar a segunda.

É nesse sentido que Friedman vê com muita desconfiança qualquer intervenção do governo na economia. Num balanço de vantagens e desvantagens da atuação estatal num determinado setor, a primeira desvantagem, anterior a qualquer consideração mais específica, é a tendência que a concentração de poder tem de limitar a liberdade individual. Ele subscrevia e repetia com entusiasmo o saying de Lord Acton que vai ao lado, Power tends to corrupt and absolute power corrupts absolutely. A limitação à liberdade individual não se restringe, porém, ao plano econômico, apesar de ser essa a consequência mais visível e imediata. Quando o governo determina que, digamos, o trigo só pode ser vendido a determinado preço, costuma-se considerar apenas a exclusão da possibilidade que as partes interessadas tinham de negociar o trigo a um preço que lhes fosse conveniente. Ocorre que o recrudescimento do poder estatal é cumulativo e ganha impulso com novas conquistas, além de ser de difícil reversão: basta ver a resistência que figuras adeptas do laissez-faire, como Reagan, tiveram de enfrentar para diminuir minimamente a presença estatal na economia.

Tudo o que vai acima, mesmo que muitas vezes ignorado na prática, é hoje considerado o óbvio ululante no meio acadêmico. Dados o conhecimento empírico e a perspectiva histórica hoje disponíveis, nem adolescentes têm como justificar o desconhecimento da impraticabilidade da economia planificada. Mas Friedman defende a retirada da presença estatal mesmo em situações que muitos liberais a considerariam natural, como na regulamentação de diferentes profissões (até a do médico!) e no controle das drogas.

Desde já antecipo que, mesmo como admirador, não vejo muito sentido em aceitar sem maiores cuidados a visão que Friedman tinha a respeito de questões não integralmente ligadas à economia. Digo isso porque essa costuma ser a postura diante de um ancião de 94 anos que já acertou tanto. Em 2002, na cerimônia em que Friedman recebeu a Medal of Freedom, o presidente Bush -- brincando, é claro -- observou que Rose é a única pessoa que sabemos ter ganhado uma discussão com seu marido.

Sem dúvida que há argumentos econômicos favoráveis à legalização das drogas (o principal deles é a dificuldade básica que os governos de hoje e sempre têm de fazer valer as leis), mas a questão envolve fatores morais e culturais que ultrapassam o escopo meramente econômico. Quando confrontado com duas situações que se lhe afiguram economicamente equivalentes, Friedman opta de imediato por aquela que não envolva a presença estatal. Trata-se da inegavelmente necessária política do mal menor. A intenção, nesse como em qualquer outro caso, é sem dúvida boa, mas corre o risco de enveredar pelo extremo oposto do caminho que ele mesmo denunciou em 62:
A outra ameaça é bem mais sutil. É a ameaça interna vinda de homens de boas intenções e de boa vontade que nos desejam reformar. Impacientes com a lentidão da persuasão e do exemplo para levar às grandes reformas sociais que imaginam, estão ansiosos para usar o poder do Estado a fim de alcançar seus fins e confiantes em sua capacidade de fazê-lo. Entretanto, se subirem ao poder, não conseguirão realizar seus fins imediatos e, além disso, produzirão um estado coletivo diante do qual recuarão horrorizados e do qual serão as primeiras vítimas. A concentração do poder não é tornada inofensiva pelas boas intenções de quem a estabelece.

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

O Neo-Iluminista Merquior

O entusiasmo com que se lê José Guilherme Merquior (1941-1991) pela primeira vez é bem compreensível entre nós: raramente encontramos, hoje, outros nomes que se aproximem dele em termos de honestidade intelectual, inteligência e erudição. Atualmente é lembrado como simples polemista ou como 'aquele sujeito que escrevia discursos para o Collor', como se o emprego de ghost-writers por parte de políticos fosse algo novo ou degradante.

Merquior combateu com a elegância e a paciência de sempre alguns dos maiores mitos do século 20: marxismo, freudismo e formalismo (tanto literário como filosófico), sendo este último um tema recorrente de seus derradeiros anos. Já falei aqui sobre o De Praga a Paris, de 1986, acerto de contas dele com os estruturalismos e pós-estruturalismos franceses. Como não poderia deixar de ser, foi devidamente perseguido por isso, e hoje vários de seus livros nem sequer são editados, obrigando o leitor interessado a peregrinações ao sebo mais próximo.

A evolução do pensamento de Merquior fica mais clara no volume Crítica, que reúne ensaios do período 1964-1989. Enquanto alguns ídolos da juventude são gradualmente superados (principalmente Heidegger e Lucáks), cresce, cada vez mais conspícua, uma fé um tanto ou quanto misteriosa no progresso e na primazia da razão. Merquior declara-se neo-iluminista e mal consegue disfarçar (se é que tenta disfarçar) a antipatia por poetas que, reconhecidamente grandes, nutrem uma visão pessimista da modernidade. E é assim que chega a considerar o 'reacionário' T. S. Eliot apenas um grande poeta menor.

Se me permitem alguns exercícios de psicologia barata, diria ser perfeitamente natural a crescente aversão de Merquior ao esoterismo tipicamente moderno. Além do formalismo estético, argumenta ele, esse esoterismo leva invariavelmente a uma condenação em bloco da sociedade tecno-liberal moderna. É esse modernismo que condena a priori a modernidade que irrita Merquior mais que qualquer outra coisa. Não surpreendentemente, afasta-se dos 'obscurantismos' da filosofia de Heidegger, da literatura 'abissal' de Joyce e do simbolismo de Mallarmé. Eu dizia que essa aversão é natural por Merquior ter convivido tão de perto, e por tanto tempo, com o estruturalismo francês da década de 60. Para alguém que leu tudo que há pra ler de Derrida, Foucault, Deleuze, Lyotard et caterva e ainda conseguiu escapar de uma congestão cerebral, é apenas lógico esperar uma extrema sensibilidade a charlatanices linguísticas e a irracionalismos cabeça-de-vento.

Ocorre que, ao denunciar mui devidamente esse irracioanlismo tresloucado, Merquior parte num átimo para uma defesa da razão iluminista como elemento restaurador. Além da palavra 'razão', 'progresso' é uma das que se repetem com mais insistência em seus ensaios. Não deixa de ser curioso que o implacável crítico do marxismo, o 'ópio dos intelectuais' nas palavras de seu professor e amigo Raymond Aron, se deixe levar por vaguidades como 'marcha da civilização' ou 'inexorável progresso histórico'. Em As Idéias e as Formas, lemos:
Esta delirante culpabilização da racionalidade científica e do progresso histórico -- que mal difere, queira ou não Adorno, dos anátemas oraculares do irracionalismo de direita, em Jung ou Heidegger, por exemplo -- aponta para uma curiosa patologia do humanismo. Entre a Renascença e a Ilustração, entre Leonardo e Goethe, o humanismo ocidental era, basicamente, inclusivo: uma ideologia que incorporava o progresso social e intelectual, a Reforma, a ciência, a revolução burguesa. Em constraste com isso, muito humanismo moderno se fez excludente: repele o mundo que o cerca, excomunga as massas e a civilização.
A acusação de humanismo excludente estaria perfeitamente justificada caso estivesse dirigida a sanguessugas da modernidade à Foucault, que se nutrem de seus mais caros pressupostos apenas para condená-la com um nojinho incontido. Merquior, porém, acaba se revelando um inveterado otimista, cético de qualquer crítica sistemática dirigida contra sua querida modernidade. O ceticismo propugnado por ele, indispensável até certo ponto, atinge um paroxismo que o impede de enxergar outra coisa senão negativismo no catolicismo (a religião positiva por excelência) de T. S. Eliot ou no 'reacionarismo' de Irving Babbitt. Aliás, qualquer consideração um pouco mais demorada sobre temas transcendentais corre o risco de receber a solene desaprovação racionalista de nosso neo-iluminista.

No fim das contas a impressão que temos é que -- apesar de ter lidado de frente, e denunciado com tanto brilhantismo, o que há de mais desprezível na intelectualidade ocidental moderna -- Merquior acreditava numa redenção iminente graças ao inevitável triunfo da razão humana. Em homenagem aos dez anos da morte de Merquior, seu amigo José Mário Pereira escreveu um emocionante depoimento (leia aqui) em que é citado um episódio que me parece emblemático da passagem de seu amigo por esse mundo:
Curiosamente, sempre que saíamos do escritório do advogado, então na Praça Pio X, Merquior pedia para irmos até a igreja da Candelária. Postava-se a admirar o interior, fazendo comentários estéticos, e nunca falava em religião ou fé.
Merquior entrou na Igreja e entendeu tudo o que lá havia para ser entendido, menos as questões relacionadas a religião ou fé. A fé dele, a fé no progresso, não permitiu que ele visse que a ameaça dos que querem destruir sua Igreja é real e premente.

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Paranóia ou Mistificação?

Escrevi há uns meses o post Duas Histórias (leia aqui), em que se faz uma comparação entre as versões de dois livros (a saber, o História para o Ensino Médio, dos brasileiros Claudio Vicentino e Gianpaolo Dorigo, e o Modern Times, do historiador inglês Paul Johnson) sobre a Revolução Russa. Por mais sacrílego que seja misturar Paul Johnson e Claudio Vicentino numa mesma discussão, a comparação não é de todo despropositada porque o livro de Vicentino é um dos mais utilizados em escolas de ensino médio brasileiras, inclusive na minha, uma escola particular e de inclinações católicas. Surge naturalmente a pergunta: por que diabos uma escola católica adotaria um livro abertamente marxista? Primeiro porque nunca ouvi falar de um livro didático de história, no Brasil, que não seja marxista. Segundo porque o catolicismo vagabundo de hoje nem sequer se dá ao trabalho de verificar o que estão ensinando pras suas crianças, se é que perceberia algo de errado se se desse ao trabalho.

Pois bem. O livro do Vicentino, por ter uma exposição muito grande, ainda mantém um mínimo de decoro: gramática e ortografia são respeitadas; procura-se encadear idéias, por mais absurdas que sejam, com um mínimo de respeito pela sanidade mental do leitor etc. Ainda assim não escapa de vários erros factuais, como dizer que a Revolução Russa teve apoio popular desde sempre, ou dizer que todo o poder foi transferido para o proletariado, quando na realidade estave sempre restrito a uma cúpula cada vez menos numerosa do Partido, dentre muitos outros. Coisas que, em países um pouco mais desenvolvidos, já são obviedades desde a década de 40.

Não é o caso do Nova História Crítica, do Mario Schmidt, que tem gerado tanto estardalhaço desde a publicação do artigo de Ali Kamel n'O Globo (leia aqui o artigo com trechos do livro). Aqui a mistificação é escancarada. A impressão que dá é que o autor se sente protegido pela indiferença (e/ou burrice) de pais e educadores, a ponto de estar suficientemente confortável pra propugnar toda sorte de baboseira e mentira, como defender a revolução cultural chinesa, a ditadura de Fidel Castro ou alegar que não havia desigualdades sociais na URSS. Num país onde escolas 'elitizadas' e 'católicas' adotam livros mendazes e defasados em mais de meio século, não chega a admirar que o livro de Schmidt tenha chegado, via MEC, às mãos de 750 mil alunos da rede pública. É sempre necessário que surja um caso grotesco como esse para que a esquerdopatia do ensino brasileiro volte a ser comentada, como se a análise dos livros 'melhores' (como o de Vicentino) já não fosse suficiente. Muito merecidamente, o caso já teve repercussão internacional (veja aqui). Orgulho de ser brasileiro? Erm...

Ser considerado paranóico é a sina de quem quer que critique a universidade (ou o ensino em geral) brasileiro, principalmente na área de humanas, onde o desastre é consideravelmente maior. Na última vez em que caí na besteira de discutir com um universitário (ciências sociais) esquerdinha, perguntei se eles liam José Guilherme Merquior, um dos maiores cientistas políticos brasileiros e respeitado (depois que morreu, é claro) até pela própria esquerda. Descobri que liam, sim: um trecho de 50 páginas de De Praga a Paris, livro que, en passant, foi escrito em inglês porque não havia quem quisesse publicá-lo por aqui. Já vi outro livro seu, Michel Foucault (edição esgotada), em que mostra metodicamente a fraude que foi Foucault, sendo citado por Roger Kimball, mas nunca por um brasileiro. Já que somos todos paranóicos e confundimos bananeiras com agentes comunistas, o máximo que podemos fazer é procurar por indícios de doutrinação em exames de vestibular e análogos.

É o que tem feito um dos mais notórios paranóicos do jornalismo brasileiro, Reinaldo Azevedo. Recentemente, em seu blog (v. link ao lado), ele publicou uma pequena compilação de exemplos tirados das seguintes instituições: escolas públicas do Paraná, Enem (nacional), Universidade Federal do ABC, Universidade Federal de Pernambuco e Mackenzie, além da rede pública nacional (caso do livro de Schmidt). Não seria muito difícil multiplicar os exemplos. Na USP, Gilberto Freyre foi esquecido e Florestan Fernandes é estudado com afinco. Na UFG, Freyre também foi relegado ao ostracismo. No instituto de tecnologia onde estudo o departamento de humanidades recomenda textos de Florestan Fernandes, Milton Santos e Eric Hobsbawn, mas nada de Freyre, Sérgio Buarque de Holanda ou Roberto da Matta.

Quando Monteiro Lobato deu o título Paranóia ou Mistificação a seu famoso artigo, havia a possibilidade de que o alvo de suas críticas fosse ambos, como de fato era. Enquanto o brasileiro só conseguir enxergar mistificação em exemplos caricatos como o livro de Schmidt, o senso comum estará fadado a ser confundido com paranóia.

sexta-feira, 4 de maio de 2007

Documentário: Nadie Escuchaba

"Ninguém escutou" é o típico apelo do teórico da conspiração. Não é à toa que muitos ainda encaram a revolução cubana exatamente assim, como uma grande teoria da conspiração. Quando muito, admitem que houve algo de errado, deixando claro que os abusos não excedem o que se observa numa ditadurazinha qualquer. Chegará o dia em que tudo ficará claro (para quem quer, já chegou) e as justificativas terão de ser 'levemente' alteradas.

O que há de mais interessante no Nadie escuchaba, e não sei bem se é intencional, é o discurso incrédulo de alguns ex-revolucionários, hoje contra-revolucionários. A incredulidade permanece mesmo depois de 10, 15, 20 ou até 25 anos de prisão. São todos intelectuais, na acepção do termo que já discutimos aqui. Perguntam-se candidamente por que o PC russo, de que eram seguidores fiéis, não veio lhes socorrer enquanto estavam encarcerados. Creditam a desgraceira em que se tornou a revolução a um acidente de percurso, um detalhe que poderia muito bem ser evitado. Daí a incredulidade: não conseguem entender por que tiveram de sofrer por tanto tempo, já que tudo que fizeram foi discordar em algum detalhe com a alta nomenklatura do partido. Repete-se aqui, com uma homogeneidade quase monótona, o que já sabíamos da 'corte' stalinista: companheiros prendendo companheiros. Sob pena de irem também eles para o xadrez (ou coisa pior) caso mostrem alguma relutância.

O fascínio que os ideais revolucionários exerce nessa gente não se apagou mesmo depois de tantos anos. Podemos pensar num sentimentalismo inarredável (é o que Hayek sugere) para explicar tanta insistência. O mesmo ocorre com os intelectuais que assistem de fora... a lista é interminável. Foucault acompanhou com entusiasmo a experiência iraniana; Garcia Marquez e Saramago nada vêem de errado em Fidel, assim como Susan Sontag não via; Edmund Wilson não escondia sua admiração por Lenin, Hemingway tampouco; H. G. Wells e Bernard Shaw, a princípio, não viam risco algum na figura de Hitler; Harold Laski e E. H. Carr chegaram a elogiar entusiasticamente a URSS stalinista. Consumada a catástrofe, transferem suas esperanças para outra experiência macabra. Cuba foi, por muito tempo, a menina dos olhos de vários intelectuais desiludidos com as experiências soviética e chinesa. Não aprenderam nada.

quinta-feira, 3 de maio de 2007

Documentário: Obsession

O documentário Obsession - Radical Islam's War Against the West tem a inestimável vantagem de contar com algumas figuras familiares (Daniel Pipes e Alan Dershowitz dentre elas), o que nos desobriga de confiar na opinião de alguns ilustres desconhecidos. A maior parte do documentário é dedicada à apresentação da propaganda radical islâmica: programas e comerciais da TV palestina, trechos de livros didáticos adotados por lá, discursos de líderes políticos e etc. Outra vantagem é que esse tipo de comportamento é colocado em sua devida perspectiva; ninguém ignora que os radicais estão em minoria. Daniel Pipes estima que entre 10 e 15% da comunidade islâmica seria simpática à idéia de jihad. Nada obstante, e essa é a impressão que se tem depois de algumas poucas imagens, a destruição que esses 15% podem perpetrar é bem considerável. Não só pelo contingente numérico (15% é uma sigla nada desprezível), mas pela obstinação com que essa minoria se entrega a devaneios antiamericanos, anti-semitas e antiocidentais em geral.

A desproporcionalidade do 'conflito' é aberrante. De um lado temos uma multidão de desvairados que gostariam de ver Bush, Blair e tutti quanti empalados e judeus queimando no inferno. Do outro vemos uma massa amorfa que nem sequer sabe direito por que é tão odiada e que se move cautelosamente para não ofender os outros. Eu mesmo, quando estive nos EUA, tive de responder a essa pergunta mais de uma vez: "Por que somos tão odiados?" Os antiamericanos do nosso lado responderiam com um simples "hipocrisia", mas os de lá nem sentem a necessidade de justificações tão 'racionais': diriam logo que os americanos são contrários à fé islâmica e que pecam só por existirem. Chegamos à estranha situação em que um mesmo fenômeno tem como causa duas coisas completamente diferentes.

Como dito acima, a ênfase é na propaganda. O documentário mostra as semelhanças entre a propaganda radical islâmica e a nazista: nada de muito novo aqui. Resta saber por que uma postura tão extremada não consegue, ou só consegue quando compilada num vídeo de 70 minutos, chamar nossa atenção. Numa das passagens mais interessantes do documentário, um doidivanas é filmado enquanto queima, aos berros, uma bandeira norte-americana. Enquanto pisoteia a bandeira, diz algo do tipo: "One of the loopholes in their constitution is that we're allowed to speak, so let us speak." Ou seja: eles estão perfeitamente cientes de que é um aspecto intrínseco à civilização ocidental que os permite prosseguir com o radicalismo. Eles não estão contanto, pelo menos não exclusivamente, com nossa burrice ou com nosso descaso; estão contando com nossa tolerância, uma tolerância que eles sabem não ter e que fazem questão de não ter, sob pena de se tornarem tão vulneráveis quanto nós.

Não deixa de mostrar certa superioridade moral o fato de uma civilização forjar os meios de sua própria destruição, mas convém não partir para o suicídio puro e simples. A tranquilidade bonachona com que repelimos qualquer perspectiva desagradável (algo a que o documentário se refere como the culture of denial) não é, muitas vezes, mais que as boas vindas a um suicídio longo e penoso. Em dado momento Tony Blair é mostrado dizendo algo do tipo: "Our will to uphold the values that are most sacred to us is stronger than their will to kill and to destroy." Espera-se que sim.