domingo, 26 de setembro de 2010

Guia de tresleitura

No mês de setembro, o caso mais exemplar de charlatanismo jornalístico que encontrei foi no blog da The Economist. Leiam o texto do "M.S." aqui e o artigo do Dinesh D'Souza que gerou o comentário aqui. Como geralmente faço nessas ocasiões, li, por cortesia, a resposta antes de ler o artigo original. Assim eu deixo que o autor da resposta me mostre ele mesmo quais são os trechos do artigo original que ele considera dignos de serem citados sem que a minha leitura interfira no processo. Esse exercício me permite desconfiar que muita gente escreve respostas na esperança de que os leitores, já convencidos pela aparente razoabilidade da resposta, sintam-se desobrigados de ler o artigo original. De fato, na seção de comentários do blog da Economist há várias invectivas contra a simples necessidade de ler textos de 'alguém' como o D'Souza.

Logo no primeiro parágrafo, o M.S. conclui que o arrazoado de D'Souza não faz o menor sentido e cita uma conclusão a que este chega no vigésimo nono parágrafo de seu texto: If Obama shares his father's anticolonial crusade, that would explain why he wants people who are already paying close to 50% of their income in overall taxes to pay even more. Qualquer pessoa que não tenha lido o artigo de D'Souza concordaria que a relação entre anticolonialismo e tributação parece meio maluca. A frase seguinte do texto original, porém, é essa: The anticolonialist believes that since the rich have prospered at the expense of others, their wealth doesn't really belong to them; therefore whatever can be extracted from them is automatically just. Pode-se concordar ou discordar dessa visão do anticolonialismo, mas a essa altura não se pode mais alegar ignorância do nexo lógico da conclusão inicial. Antes de terminar o primeiro parágrafo de seu texto, M.S. dispara: Message to American billionaires and the people who write for them: many events and movements in world history did not revolve around marginal tax rates on rich people in the United States.

Como diria ele próprio, come again? Sugerir que a idéia de que qualquer acumulação de renda é injusta, e que portanto deve ser redistribuida, contribuiu para o crescimento desenfreado da tributação (especialmente sobre milionários) é então o mesmo que dizer que eventos da história mundial (provavelmente ele está se referindo ao anticolonialismo) giram em torno da tributação sobre milionários? Aqui o procedimento foi o seguinte: atribuir absurdidade, através da omissão de termos explicativos, a uma hipótese com que se pode discordar, mas que nada tem de absurda, e em seguida inverter sujeito e objeto da hipótese e atribuí-la novamente ao autor original. Só mesmo não tendo lido o artigo de D'Souza para não desistir dessa brincadeira após o primeiro parágrafo.

Mais adiante M.S. declara que entende perfeitamente como Barack Obama pensa, já que é assim que pensa a maioria dos que se dizem de centro-esquerda nos EUA. Isso nos leva a concluir que se qualquer grupo numeroso de americanos começar a morar em cima de bananeiras, M.S. entenderá perfeitamente como eles pensam.

No pouco espaço que lhe resta, M.S. ainda consegue (a) distorcer uma passagem do The Virtue of Prosperity, em que fica claro a qualquer leitor mediano que o D'Souza defende, sim, a igualdade de oportunidades -- the government is obliged to treat all citizens equally -- ao mesmo tempo em que enaltece as desigualdades de mérito e de inteligência; (b) tecer ilações levianas sobre a história da Índia e envolver a família de D'Souza na bagunça, apenas pra reconhecer mais tarde que era tudo brincadeirinha e que o conhecimento que D'Souza tem sobre o pai de Obama é comparável ao que ele mesmo tem sobre a história da Índia, isto é, nenhum; (c) perguntar aos céus por que, meu Deus, ainda lêem artigos como o de Dinesh D'Souza.

Já vi semelhante baixeza intelectual na mídia brasileira, mas não esperava coisa parecida na Economist. Por que, meu Deus, ainda lêem artigos como esse?

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Eu, substantivo

Nota: neste post há spoilers do Inception.

Na aula 64 do curso online, o Olavo faz um resumo de aulas anteriores com ênfase no tema mais importante, o 'eu substantivo' ou 'eu profundo' ou 'alma imortal', aquilo que realmente somos. O que somos, segundo esse conceito, transcende corpo e mente abrangendo-os: quando digo 'eu', certamente não me refiro somente a meu corpo e à minha mente, mas também a eles. Na realidade a 'alma imortal', sendo perene, é maior que qualquer universo físico imaginável.

A maneira mais fácil de perceber isso é, acho, lembrar que quando pensamos em uma pessoa, pensamos sobre ela, não pensamos ela própria. Se não fosse assim, ela deixaria de ter existência autônoma e seria apenas um objeto do meu pensamento. Da mesma maneira a idéia que faço de mim é apenas um pensamento, não sou eu mesmo; eu, porém, não deixo de existir por isso. Sendo assim, o 'eu substantivo' (o meu e o de qualquer outra pessoa) não pode ser conhecido por pensamento; só pode ser conhecido por intuição ou por 'conhecimento por presença'.

Já vi o Inception, último filme do Cristopher Nolan, sendo criticado por brincar com a noção de realidade, por dissolvê-la na atmosfera do sonho etc. Na realidade o que ele faz é o contrário: no final das contas, Cobb desiste do sonho porque Mal, sua finada esposa e, no sonho, uma projeção de seu subconsciente, é uma 'sombra' quando comparada à Mal real, a Mal-substantiva. Sendo apenas um pensamento, não poderia ser mais que sombra; quando gostamos de alguém, gostamos do 'eu substantivo', não dos pensamentos que ele suscita. Se esse último caso fosse verdadeiro, não precisaríamos lamentar a morte de ninguém.

Outro ponto é que o filme jamais questiona a precedência do estado de vigília sobre o de sono; todos os personagens (exceto as vítimas dos golpes, que apenas de maneira precária são enganadas) parecem estar cientes da distinção entre os dois. Perto do questionamento radical de Descartes, um sonho em que nos basta girar um totem para sabê-lo sonho é brincadeira de criança. Ainda que todo o primeiro plano da ação do filme seja também um sonho, como a tomada final sugere, por que teríamos motivos para nos alarmar se o percebemos tão facilmente? Basta que Cobb preste atenção ao seu totem para percebê-lo também.

Diferentemente do pesadelo de Descartes, aqui o trânsito entre sonho e realidade é até bem previsível: há relação de proporcionalidade entre o tempo transcorrido em ambos; sabe-se o que acontece após a morte em sonho etc. Mais importante que tudo isso, todos os sonhos, não importando em que nível estejam, só fazem sentido quando confrontados com a realidade, e esta nunca deixa de ser reconhecida como tal. De certa maneira, Inception é o mais realista dos filmes.

domingo, 29 de agosto de 2010

Taxação progressiva

Às vezes o aparato estatal parece tão confuso e cansativo que certas verdades tornadas axiomáticas apenas recentemente nos passam desapercebidas ou, pior, percebemo-las dignas do status de inquestionáveis. Nos EUA, o imposto de renda nasceu em 1913 (antes tinha aparecido provisoriamente em situações excepcionais, como a guerra da secessão) e no Brasil só na década de 20. Afora a distinção radical entre taxação direta (IR) e indireta (imposto sobre serviços, produtos etc.), o que me interessa realmente é o princípio ability-to-pay (paga mais quem pode mais) ou taxação progressiva.

A maneira de justificar esse princípio é sempre retroativa: já que temos que arrecadar uma dinheirama, que paguem mais os que mais podem. Mas isso é tão convincente quanto dizer que o aborto deve tornar-se legal porque muitas o praticam, ou que o homicídio deve ser aceito por ser praticado 50.000 vezes ao ano só no Brasil.

Pode parecer exagero de libertarian ensandecido, mas a taxação progressiva é como um roubo institucionalizado, ainda mais porque ela discrimina as vítimas mais opulentas exatamente como o fazem ladrões profissionais. Os ladrões procuram as casas com grandes jardins, torneiras de ouro e TVs de LED; a Receita Federal procura os donos dessas casas. Os assaltantes deixam estar os esfaimados e maltrapilhos; a Receita Federal também.

Tentar argumentar que no final das contas isso é contraproducente para o próprio Estado é inútil por vários motivos, além de me parecer uma espécie de estertor dos derrotados. Idealmente o princípio deveria ser repelido não por comprometer num futuro incerto a bolsa estatal, mas por ser abjeto em si mesmo. De qualquer maneira, é sempre bom lembrar que um aumento salarial representa mais impostos pagos não só pelo funcionário que o recebeu, mas em escala ainda maior pelo empregador. E que o dinheiro que poderia ser reinvestido na empresa (gerando novos e/ou melhores empregos) ou na poupança mesma de seu dono (gerando mais crédito disponível em mercado) é diretamente transferido aos cofres públicos, para o contentamento de burocratas bonachões.

A malha fina de que fala a Receita é termo bem empregado; é preciso capturar as mosquinhas que insistem em voar incorruptíveis. Para mais detalhes, leiam esse livrinho do Frank Chodorov.

domingo, 22 de agosto de 2010

Sir Isaac não andava de ônibus

Ainda no tema da percepção direta da realidade, vejam que o John Derbyshire, nesse artigo, praticamente declara a total inépcia do que ele chama 'folk metaphysics' para lidar com os cada vez mais complexos problemas da ciência moderna. A mente humana individual não vai ser de muita serventia ao investigar a estrutura profunda da realidade, devendo ser substituída, suponho eu, pelo miraculoso 'método científico'. Não me perguntem quem estaria a guiar o tal método científico; logicamente falando, se não é a mente humana individual, só pode ser a mente humana coletiva, isto é, o consenso científico ou algo que o valha.

Derbyshire sugere que a metafísica folk começa a falhar por volta de 1870, citando como exemplo disso a surpresa (surpresa de quem?) ao constatarmos que a reação de sódio com cloro, em circunstâncias propícias, gera o cloreto de sódio ou sal de cozinha, substância radicalmente diferente de seus componentes (um gás venenoso e um metal bastante reativo). Provavelmente Derbyshire também se surpreenderia se lhe constassem que íons de cloro em solução aquosa tampouco têm muita coisa a ver com um gás venenoso, assim como cátions de sódio não são em si metálicos ou sequer palpáveis... ginasianos de química estudam essa e outras reações parecidas com muito mais tédio que assombro, num tópico vestibulando chamado química inorgânica.

Assim ficamos sem saber se a metafísica folk é tão-somente percepções intuitivas e individuais da realidade ou se é a tentativa desastrada de aplicar princípios metafísicos daí extraídos (como o 'like can only come from like') a ordens eminentemente não-metafísicas, como a de uma simples reação química. Se estamos no segundo caso, é preciso reconhecer que ela não servia nem em 1870 nem nos séculos anteriores, que já conheciam a bombástica reação do sal de cozinha.

É ao falar das leis de movimento de Newton, porém, que o artigo de Derbyshire cai de uma vez no ridículo. Aí vai o resuminho que ele faz:
Sir Isaac: An object in uniform motion stays that way until a force is applied.

Folk Metaphysician: No it doesn’t. Objects set moving on the level always roll or slide to a stop. Things moving through the air fall to the ground, unless they’re flying. On water, things get carried every which way by currents, and sometimes sink.

Sir Isaac: Apply a constant force to a constant mass, you’ll get steady acceleration.

Folk Metaphysician: A horse pulling a wagon is applying constant force to constant mass, isn’t it? So if your so-called “law” is true, why wasn’t 19th-century America full of horses and wagons zipping around at hundreds of miles an hour? Huh?

Sir Isaac: Every action generates an equal and opposite reaction.

Folk Metaphysician: So when I push on this wall with my hand. the wall pushes back? What, there’s a little hand in the wall pushing back at mine? Hoo hoo hoo! How’s it know when to stop pushing? Ha ha ha ha!
No primeiro caso, a objeção do folk metaphysician está totalmente correta: não seria possível construir uma ponte ou uma estrada ou qualquer coisa sem levar em conta o efeito do atrito, o mesmo que impede que os objetos continuem se movendo indefinidamente. No segundo caso a objeção poderia ser feita por um aluno de 12 anos que leu sobre força de Newton pela primeira vez, sendo suficiente para acabar com a confusão um professor que lhe explicasse que uma força de atrito dinâmico, de mesma magnitude e em sentido contrário, atua sobre a carroça zerando a força resultante e fazendo com que ela se mova em velocidade aproximadamente constante. No terceiro caso a objeção, creio eu, só existe na cabeça de Derbyshire. Nunca vi semelhante disparate sendo formulado, e vejam que estudei no Brasil. É claro que a parede atua sobre nossas mãos, ou não sentiríamos dor ao socá-la.

Uma objeção mais inteligente à lei da ação-e-reação de Newton seria observar que, quando estamos num ônibus em processo de frenagem, somos empurrados para frente sem que exerçamos força de reação em quem quer que seja. Temos aí um exemplo de folk metaphysics, e de folk que anda em ônibus, fazendo frente aos desafios da ciência moderna. Hoo hoo hoo! Ha ha ha ha!

sexta-feira, 23 de julho de 2010

'With or without you' em cerimônia de casamento

Bola fora ou é só impressão minha?

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Razão espontânea

Na aula 20 do curso de filosofia, Olavo de Carvalho fala da diferença entre razão espontânea e razão refletida. Dá como exemplo de razão espontânea a percepção pré-analítica de um esquema probabilístico, como o resultado em um jogo de cartas. Digo pré-analítica porque o sujeito parece perceber quais são as alternativas mais vantajosas antes mesmo de considerar detidamente a formulação matemática do problema (os jogadores ficam com as palmas das mãos suadas sempre que optam pela alternativa mais arriscada). Apesar de a conclusão mais comum ser atribuir esse conhecimento à inconsciência, o Olavo objeta que esse tipo de conhecimento é tão consciente quanto as considerações matemáticas posteriores, sendo que estas últimas nos dão mais segurança apenas porque são criações dirigidas por nós mesmos, e não algo que nos chega diretamente da realidade.

O ponto que mais me interessa nessa discussão toda é, claro, como aperfeiçoar a razão espontânea. Alguém fez essa pergunta durante a aula e o Olavo aconselhou a simples abertura intelectual à realidade, a rejeição do senso-comum pré-fabricado etc. Parece mesmo difícil conceber uma maneira de treinar esse tipo de razão, tanto que, na faculdade, quando deparávamos com um exemplo de razão espontânea prodigiosa, atribuíamos o ocorrido à 'inteligência' do sujeito. Só posso dar exemplos da engenharia porque tenho muito pouca experiência com temas filosóficos.

Na faculdade de engenharia, a minha impressão era a de que todos os alunos tinham a faculdade de razão refletida mais ou menos equivalente; qualquer discrepância pontual era facilmente explicada por falta de estudo do assunto específico. Já a razão espontânea variava muito, especialmente em problemas de visualização geométrica. Enquanto alguns sofriam para projetar interseções de planos ou desenhar sólidos a partir de suas projeções, outros faziam-no automaticamente e sem precisar seguir o procedimento canônico (o procedimento na mais das vezes os atrapalhava).

Outro aspecto curioso da razão espontânea é que, além de distribuída desigualmente entre os seres humanos, ela parece ser heterogênea também dentro de cada um deles: enquanto alguns tinham-na desenvolvidíssima para a geometria descritiva e pífia para a álgebra linear, outros, que não podiam desenhar uma pirâmide a partir de suas projeções, intuíam a diagonalização de matrizes sem conhecimento prévio do procedimento.

Um dos meus melhores amigos da época era quase infalível em estimações aleatórias, como acertar a área superficial do continente africano ou do corpo humano, o peso dos livros em uma biblioteca ou o número de bolas de tênis necessárias para encher uma sala. Numa das vezes em que tentou melhorar a estimativa com cálculos, acabou piorando o número.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Ódio ao sucesso

É notório o desprezo, ou até mesmo ódio, que o brasileiro tem pelo conhecimento; os personagens do Lima Barreto nos lembram disso o tempo todo. José Guilherme Merquior, que lia muito, foi acusado de terrorismo bibliográfico em debate público por tentar rastrear uma idéia com mais de duas ou três referências. Eu diria que o brasileiro tem ódio ao sucesso alheio, mas por que teria ódio ao conhecimento se ele mesmo não considera isso uma forma de sucesso? Nesse caso acho que há mais birra que ódio; há a simples constatação de que outros têm o que não tenho. Ou, para não desacreditar de todo da raça humana, há a vaga intuição de que o conhecimento nos leva a um mundo mais interessante e, para eles, insondável.

Quando o assunto é dinheiro a coisa muda de figura. O dinheiro se transformou no parâmetro preferido de aferição do caráter humano: odeia-se quem não se comporta apropriadamente em relação a ele. Nós armamos esquemas sociais curiosos pra tentar fugir a essa conclusão. Exemplo: emprestamos dinheiro com prodigalidade, mas apenas para aqueles que sabemos serem bons pagadores. Ao mesmo tempo em que afetamos desprendimento em relação a bens materiais, fomentamos um ambiente de execração aos devedores. Pagam-se as dívidas não mais por sentimento de dever, mas por medo de retaliação. Prova disso é que, quando o credor se esquece da dívida, o devedor acompanha-o de bom grado na amnésia contábil.

Vejam o caso dos judeus. Até há poucos anos eu supunha ingenuamente que os anti-semitas praticamente inexistiam entre nós. Supunha também que os poucos que existissem justificariam o anti-semitismo com algo mais que o argumento da dominação fiduciária. A totalidade dos anti-semitas que conheço pessoalmente (não são muitos, mas a coincidência já me parece assombrosa) podem até ter motivos mais obscuros para serem anti-semitas, mas, ao tentar explicá-lo, só se lembraram de mencionar episódios de ordem pecuniária, alguns deles pateticamente anódinos. Ainda que não esteja aí o principal motivo, é com esse motivo que eles esperam conquistar nossa empatia.

De toda a complexidade da origem do anti-semitismo, pouca coisa parece ter sobrado, no Brasil, além do dinheirismo. Deve servir de consolo aos judeus a percepção de que por aqui todo sucesso financeiro é visto com desconfiança. Poderia haver preconceito mais contraproducente?