sábado, 26 de dezembro de 2009

Red Right Hand


Take a litle walk to the edge of town
Go across the tracks
Where the viaduct looms,
like a bird of doom
As it shifts and cracks
Where secrets lie in the border fires,
in the humming wires
Hey man, you know
you're never coming back
Past the square, past the bridge,
past the mills, past the stacks
On a gathering storm comes
a tall handsome man
In a dusty black coat with
a red right hand

He'll wrap you in his arms,
tell you that you've been a good boy
He'll rekindle all the dreams
it took you a lifetime to destroy
He'll reach deep into the hole,
heal your shrinking soul
Hey buddy, you know you're
never ever coming back
He's a god, he's a man,
he's a ghost, he's a guru
They're whispering his name
through this disappearing land
But hidden in his coat
is a red right hand

You ain't got no money?
He'll get you some
You ain't got no car? He'll get you one
You ain't got no self-respect,
you feel like an insect
Well don't you worry buddy,
cause here he comes
Through the ghettos and the barrio
and the bowery and the slum
A shadow is cast wherever he stands
Stacks of green paper in his
red right hand

You'll see him in your nightmares,
you'll see him in your dreams
He'll appear out of nowhere but
he ain't what he seems
You'll see him in your head,
on the TV screen
And hey buddy, I'm warning
you to turn it off
He's a ghost, he's a god,
he's a man, he's a guru
You're one microscopic cog
in his catastrophic plan
Designed and directed by
his red right hand

Não tendo lido ainda o Paradise Lost de John Milton, fico grato a Nick Cave pela referência.

What if the breath that kindl'd those grim fires
Awak'd should blow them into sevenfold rage
And plunge us in the Flames? or from above
Should intermitted vengeance Arme again
His red right hand to plague us? what if all
Her stores were op'n'd, and this Firmament
Of Hell should spout her Cataracts of Fire,
Impendent horrors, threatning hideous fall
One day upon our heads; while we perhaps
Designing or exhorting glorious Warr,
Caught in a fierie Tempest shall be hurl'd
Each on his rock transfixt, the sport and prey
Of racking whirlwinds, or for ever sunk
Under yon boyling Ocean, wrapt in Chains;
There to converse with everlasting groans,
Unrespited, unpitied, unrepreevd,
Ages of hopeless end; this would be worse.

domingo, 13 de dezembro de 2009

Um post autobiográfico

Desde ontem sou engenheiro mecânico-aeronáutico, mas me atenho à primeira metade do termo por gosto e aptidão. A convicção nunca foi tanta que não me fizesse pensar em desistência algumas vezes nesses últimos 5 anos: talvez eu deva agradecer à minha inércia. Achei que seria razoável encerrar o ciclo sem implicar com o discurso prafrentex e bobinho que costuma acompanhar essas ocasiões.

Fiz algumas boas amizades no período, e é por essa e outras que de nada me arrependo. É bem provável que a maioria desapareça em breve, mas fazer o quê: outras surgirão, só não sei se com a mesma inteligência. Também é pouco provável que eu volte a pisar em São José dos Campos.

Percebi que comecei esse blog quando terminei o primeiro ano da faculdade e que, felizmente, não retiro tudo o que disse à época.

Termino com um poema do João Cabral de Melo Neto que sempre me pareceu uma visão simpática e coerente do engenheiro:

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

O dilema da inteligência

O sujeito, quando dá conta de si no mundo, pode cair em uma de quatro categorias:

(a) Eu sou inteligente e o resto do mundo também. Essa parece ser a situação mais estimulante; há espaço para competições saudáveis e a vida é um cenário constantemente surpreendente. O simples canto do pássaro trai uma inteligência superior; tudo parece ser de uma complexidade ilimitada ainda que inteligível. Por outro lado, se o sujeito não se podar aqui e ali, começa a surgir uma arrogância panteísta, a idéia de que todas as mentes somadas formam o deus infalível do intelecto.

(b) Eu sou inteligente e o resto do mundo é meio burro. Situação típica nos jovens e nos loucos, e nos jovens loucos. Cada giro que o planeta dá sem minha supervisão parece um desperdício; por não se saber ao certo por que o mundo não pára para ouvir minhas instruções, crescem o senso de injustiça e o ressentimento. O ressentimento, por sua vez, pode fazer com que o louco fique perigoso ou que o jovem nunca cresça.

(c) Eu sou meio burro e o resto do mundo é inteligente. Imagino que aqui predomine um complexo de inferioridade destrutivo ou uma vassalagem resignada, a depender da índole do sujeito. Os mais fleumáticos não devem deixar de se maravilhar, e de se beneficiar, com os prodígios dos outros; os mais agitados vão se valer de meios alternativos como a violência.

(d) Eu sou meio burro e o resto do mundo também. Aqui a aridez intelectual desanima a todos; boas idéias são ceifadas desde a origem por pura incredulidade. O tédio predomina e as perspectivas de melhoras são ridicularizadas: não há salvação e é contraproducente pensar em semelhante fantasia.

Daqueles que ao menos param pra pensar no que vai acima, a maioria parece estar inserida na quarta categoria. Nós só não nos julgamos completamente burros (daí o 'meio') porque reconhecemos que há algo de errado. Ninguém nega que a inteligência existe, mas ela parece estar perdida no passado ou pulverizada no presente. O tipo de inteligência que indubitavelmente existe hoje, o tipo científico, perde o calor da novidade depois de pouco tempo -- a menos que o sujeito, geralmente um da primeira categoria, não consiga perceber seus limites. Os inteligentes de hoje estão enganados e os de ontem entediados.

sábado, 31 de outubro de 2009

É natural ser selvagem

É comum usarem um 'é natural' para justificar desvios comportamentais, mas naturalidade não serve como desculpa quando se sabe que é natural ser selvagem, também. Eu mesmo, na tentativa de irritar amigos esquerdistas, gosto de apontar que tal ou qual atitude do povão, quando convenientemente contrária ao ideário esquerdista, é natural, sugerindo sub-repticiamente que o natural é um encaminhamento divino para o correto.

Respirar é natural e inevitável; espirrar com estardalhaço também é natural, mas esperamos com certa dose de razoabilidade que o estardalhaço não se dê em público. Fala-se muito em espontaneidade e suas vantagens, mas não há muitas vantagens se você acredita, como eu, que o ser humano precisa de muito treinamento para chegar a ficar tolerável. Cada gesto espontâneo é uma distração do pupilo humano, verdadeiro lapso na escola da vida.

A prova insofismável da tendência humana à selvageria é o bebê recém-nascido: sem a devida instrução, ele permanecerá um nojentinho por tempo indeterminado. Muitos responderiam que a verdadeira tendência humana é a organização, já que, como vemos, acabamos ficando razoavelmente organizados depois de alguns milhares de anos. Acontece que regras de higiene e conduta não são seguidas por convicção individual de todos, e sim porque aqueles poucos que de fato se preocupam com isso convenceram, sabe-se lá como, o resto da população mundial. A hipótese de que o bom e o verdadeiro se confundem é, vemos agora, essencial: se os bons começam a mentir, mentira torna-se verdade e continuamos a nos lambuzar em refeições para sempre.

sábado, 17 de outubro de 2009

Duas dúvidas

1) Dos mitômanos. Como explicá-los? Começam a mentir quando crianças e não conseguem mais parar? Um colega meu já confessou que gosta de mentir para testar sua habilidade de enganar as pessoas. Esse é o tipo mais facilmente explicável e, por isso mesmo, menos interessante. Uma divisão importante é a que separa os que inventam episódios mirabolantes -- os mitômanos na acepção original -- dos exageradores. Esses últimos são capazes de jurar que naquela noite beberam 1 litro de cachaça e não 3 doses; cada conversa nada mais é que um intervalo entre dois eventos pitorescos de suas vidas. Dá vontade de acalmá-los: nós gostamos de vocês assim mesmo, 3 doses já são suficientes. Se confrontados, preferem insistir na mentira ou até aumentá-la, para provar que em verdade estavam sendo conservadores no início. Os mitômanos ao menos têm a chance de ser originais, mas seria decepcionante descobrir que tudo não passa de um esporte. Por hábito, eu acredito de imediato no que as pessoas me dizem a menos que isso me traga algum risco ou seja logicamente impossível. Se alguém se acha mais inteligente por me fazer acreditar numa história falsa, eu me acho mais inteligente por não me importar com isso. Prefiro acreditar que os mitômanos não se podem controlar; as lorotas vão surgindo em cadeia e quando o sujeito dá por si ele mesmo já está convencido da veracidade de suas fantasias. Se for assim, estão perdoados.

2) Do humor em sonhos. Humor é um dos assuntos mais complicados que existem; o humor masculino é totalmente diferente do feminino (esse eu sinceramente acredito que nem sequer existe, a não ser por imitação) e o humor divino permanece um grande mistério: Deus acha graça de alguma coisa? Outro dia sonhei que conversava com um amigo de infância que não vejo há alguns anos e, pedindo notícias de conhecidos em comum, perguntei por onde andava Fulano, sendo que Fulano era o meu interlocutor. 'Ah, é você', me desculpei, e a conversa presseguiu normalmente, sem que ele ou eu estranhássemos a confusão. Pensando bem, lembrei que nunca tive um sonho engraçado, ou melhor, um sonho que me parecesse engraçado no momento do sonho. O enigma estaria solucionado se eu descobrisse que a parte do cérebro responsável pelo humor, se é que isso existe, fica desativada enquanto dormimos, mas nem sequer me lembro de sonhos em que me limito a recordar situações engraçadas. E o episódio com meu amigo de infância, foi piada de quem? Ou isso nem foi uma piada?

terça-feira, 15 de setembro de 2009

O brasileiro finge que trabalha

Descobri esses dias que, na empresa onde trabalho, o país cujos funcionários ficam até mais tarde trabalhando é o Brasil. O brasileiro trabalha mais, então? Não: trabalha menos. O conhecimento prévio de que vai ser necessário ficar no serviço até altas horas diminui o ritmo e o que se resolve em 8 horas em outros países deve levar 12 por aqui. A hora extra se impõe antes de se fazer necessária.

Agora eu entendo a obsessão que o brasileiro tem por se dizer ocupado. Se não o fizer, vai ser confundido com o grosso dos brasileiros, tidos como preguiçosos. É preciso deixar bastante claro na mesa do bar que trabalham 12, 16 horas por dia; pouco importa se 2 ou 3 delas foram gastas no corredor do cafezinho e outras tantas em sites de notícias.

O mais deprimente é ver o pessoal que vem de fora se adaptando a essa realidade: primeiro tentam esboçar alguma reação, lembram que têm famílias e outros afazeres em casa etc. Depois, mui brasileiramente, desaceleram o trabalho, aproveitam cada oportunidade para interrompê-lo, catimbam mais que time argentino em final de Libertadores. Ouçam o que digo: os brasileiros, e os estrangeiros que se lhes assemelham, apenas fingem que trabalham.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Mudança de endereço

Por motivos técnicos, o endereço do Parnaso mudou. Agora é mntparnaso . blogspot, e não mtparnaso . blogspot. O endereço antigo redireciona pra cá, mas atualizem aí. Até.

domingo, 9 de agosto de 2009

Cristianismo para crianças

Everyone has warned me not to tell you what I am going to tell you in this last book. They all say 'the ordinary reader does not want Theology; give him plain practical religion'. I have rejected their advice. I do not think the ordinary reader is such a fool. Theology means 'the science of God', and I think any man who wants to think about God at all would like to have the clearest and most accurate ideas about Him which are available. You are not children: why should you be treated like children?
É assim que C. S. Lewis começa o quarto e último livro do Mere Christianity, uma das mais populares introduções ao cristianismo de que se tem notícia. É fato que a última parte do livro vai além da 'plain pratical religion', mas só nesse sentido pode-se dizer que o leitor não é tratado como criança. A maneira como alguns pontos mais espinhosos da doutrina cristã são explicados apela, muitas vezes, ao infantil. A coisa é que se me dissessem que não poderia ser de outra forma eu seria forçado a concordar.

O comentador da Bíblia ou da doutrina cristã em geral enfrenta uma tarefa já em si impossível: reescrever, de maneira a tornar mais compreensível, algo que foi escrito com a melhor terminologia possível. Se a Bíblia é a própria palavra divina, certamente os termos que lá se encontram para descrever uma relação entre entes (por exemplo, Pai, Filho e Espírito Santo) são melhores que quaisquer termos que eu ou você possamos imaginar. Se acontece de essa relação permanecer obscura, outros artifícios (que por definição não são os melhores) devem ser utilizados.

Nesse processo o comentador cristão acaba cedendo ao gosto da época (C. S. Lewis faz isso ao chamar o ser humano de 'human machine' repetidas vezes) ou, com menos frequência, descobrindo alternativas geniais. Outras vezes o artifício é simplesmente pueril, como comparar a diferença entre Jesus e o homens com a diferença entre o homem e soldados de chumbo. Malabarismos assim, o próprio Lewis reconhece, servem para que a terminologia original seja melhor compreendida, nunca substituída. São muletas que, graças a nossa inteligência, não precisam ser reutilizadas.

Os símiles de Lewis funcionam muito bem no capítulo sobre a santíssima trindade. Mesmo os cristãos mais esforçados confessam sentir dificuldades para entender o que seria uma divindade que é, 'ao mesmo tempo', pai, filho e espírito santo. Em primeiro lugar é preciso lembrar que nem tudo é necessariamente compreensível: a noção de mistério nunca foi estranha ao cristão. Fazendo um paralelo com a geometria, porém, a coisa parece ficar menos cabeluda. Dois vetores linearmente independentes x e y geram um plano e qualquer outro vetor nesse plano pode ser escrito como combinação linear de x e y. Aos seres que habitam esse plano (isto é, os vetores do plano xy) a noção de profundidade é desconhecida: nem os vetores mais espertos seriam capazes de imaginar o que seria isso. Nós conseguimos imaginar um espaço tridimensional, mas não um quadridimensional, apesar de espaços multidimensionais serem matematicamente manipuláveis. Da mesma maneira, Deus seria um ente 'tridimensional': manipulável (no sentido que podemos falar sobre) teoricamente, mas fora do alcance de nossa imaginação. Deus é um cubo e nós somos as arestas.

Outra questão que gera muita dúvida é o porquê de a Fé ser, por si só, uma virtude. Não só é uma virtude como é uma das três virtudes teologais, juntamente com esperança e amor. A objeção mais comum é a de que acreditar em algo logicamente comprovável não passa de nossa obrigação, assim como é obrigação do estudante de cálculo 'acreditar' no Teorema do Valor Médio após ver sua demonstração. O sujeito que lê o argumento do primeiro motor e sai acreditando num ente que é só potência não necessariamente tem fé; a princípio ele é apenas um bom aluno de lógica. É muito comum, porém, deixarmos de acreditar em algo de que estamos perfeitamente convencidos do ponto de vista lógico: das pessoas que sentem medo de viajar de avião, arrisco dizer que a maioria sabe que esse meio de transporte é mais seguro que o carro. Eles não duvidam das estatísticas, apenas têm medo. Há cristãos que deixam de ser cristãos não por verem uma falha lógica na doutrina, mas porque perdem o interesse.

Finalmente, acho que vale mencionar a objeção, já bem batida, segundo a qual em verdade o livre-arbítrio não existe porque, se Deus sabe exatamente o que vou fazer amanhã ou em qualquer futuro mais afastado, não tenho liberdade para fazer diferente. Como resposta eu costumava dizer que, dada a nossa linha do tempo, Deus está fora dela: para ele não existe passado ou futuro. Lewis sugere um jeito melhor, ou, se quiserem, mais didático: Deus seria a folha de papel em que a linha está desenhada. Assim sendo, Deus não prevê, ele vê, mas vê o futuro e o passado assim como nós vemos o presente. Dito dessa maneira, nós, as crianças, entendemos.

terça-feira, 28 de julho de 2009

Nietzsche, um filósofo visceral

É sempre uma satisfação resgatar expressões em desuso ou em mau uso: Nietzsche foi, principalmente no Ecce Homo, espécie de introdução geral para sua própria obra escrita poucos meses antes de ele enlouquecer, um filósofo visceral. Segundo consta, esse livrinho teria sido, em 1908, tema de uma das reuniões da Sociedade Psicanalítica de Viena, na casa de Freud. Freud teria dito que o livro não poderia ser desconsiderado como produto da insânia porque ainda há nele o domínio da forma, e acrescento que, em verdade, o conteúdo também é coerente com o que Nietzsche vinha escrevendo até então. O mais curioso é que Freud se limitava a discutir o 'caso Nietzsche', e não suas idéias, porque, dada a semelhança entre as invenstigações psicanalíticas e as do filósofo, seria interessante preservar a 'independência de espírito'. Freud chegou a dizer que a riqueza das obras de Nietzsche era tamanha que o impedia de ler mais de meia página (!?) de seus livros, mas cumpre advertir que o artifício de evitar leituras para preservar a pureza de espírito foi, até onde eu saiba, enunciado pela primeira vez pelo próprio Nietzsche. No Ecce Homo já lemos:
Apenas meus olhos puseram fim à bibliofagia, leia-se "filologia": estava salvo dos livros, nada mais li durante anos -- o maior benefício que me concedi! -- Aquele Eu mais ao fundo, quase enterrado, quase emudecido sob a constante imposição de ouvir outros Eus (-- isto significa ler!), despertou lentamente, tímida e hesitantemente -- mas enfim voltou a falar.
Os indícios de loucura são perceptíveis não em incoerências de forma ou de conteúdo, mas nos arroubos de imodéstia e na obsessão pela saúde, digamos, intestinal. Justiça seja feita mais uma vez: não há nada aqui que já não tenha sido anunciado em obras anteriores, apenas agora os ânimos estão exacerbados. Os conselhos dietéticos são, diga-se, uma diversão à parte:
Uma refeição forte é mais fácil de digerir do que uma demasiado ligeira. Que o estômago entre inteiro em atividade, primeira condição para uma boa digestão. Deve-se conhecer o tamanho do próprio estômago. (...) Nada entre as refeições, nenhum café: café obscurece. Chá, somente de manhã benéfico. Pouco, porém vigoroso: é prejudicial e debilitante por todo o dia quando fraco demais, mesmo que por um mínimo. (...) Ficar sentado o menor tempo possível; não dar crença ao pensamento não nascido ao ar livre, de movimentos livres -- no qual também os músculos não festejem. Todos os preconceitos vêm das vísceras.
Devo confessar que simpatizo bastante com a hipótese de uma relação estreita entre dieta (e clima) e disposição intelectual ("o clima alemão em si já é suficiente para desencorajar vísceras fortes, de disposição heróica inclusive (...) Paris, a Provença, Florença, Jerusalém, Atenas -- esses nomes provam algo: o gênio é condicionado pelo ar seco, pelo céu puro"), apesar de não ir tão longe quando Nietzsche gostaria. Se Nietzsche já tinha deixado claro que noções como 'pecado', 'alma', 'compaixão' etc. são invenções perniciosas de espíritos ressentidos, de espíritos que dizem 'Não', ficamos sabendo no Ecce Homo que a dieta e o clima substituem-nas como as únicas coisas que de fato importam em nossas vidas.

Quem já leu o The Abolition of Man, do C. S. Lewis, deve achar esse detalhe bem sugestivo. Nele, Lewis argumenta que a tentativa de produzir juízos de valor sem o auxílio de um código absoluto, inquestionável etc., isto é, amparado apenas no Instinto, ou na Utilidade, ou em algo que o valha, é um exercício fútil porque, cedo ou tarde, o sujeito acaba tendo de se amparar em algo que ele negava de início, a saber, um princípio inquestionável. Por exemplo, quem acredita que preservar a espécie não passa de um instinto, tem de explicar porque devemos obedecer a esse instinto e não ao seu antípoda, o de destruir a espécie. Se dizemos que um instinto é melhor, ou superior, ou mais profundo, ou mais urgente, que outro, já partimos para um juízo de valor que não é em si instintivo. Nietzsche não comete esse erro porque ele não deseja estabelecer uma nova valoração; ele gostaria de suspender toda noção prévia de valor. Devemos admitir que essa proposta ao menos não é auto-contraditória.

Lewis lida com essa proposta, apesar de não se referir explicitamente a Nietzsche, ao falar da suspenção total de valores. Se não podemos apelar a princípios absolutos, conhecidos de todos (princípios que não admitem dedução lógica), só nos resta apelar à vontade arbitrária de quem quer que esteja em posição de arbitrar, os quais formam o grupo que Lewis chama the Conditioners. O conditioner de Lewis é o super-homem de Nietzsche: o sujeito para quem noções clássicas como bem e mal perderam o significado porque ele mesmo tem liberdade de definir o que é bom e mau. O que está sob julgamento não pode ser também juiz. Apesar de isso ser aparentemente a liberdade suprema, resta a pergunta: o que condiciona os condicionadores? Lewis responde:
By the logic of their position they must just take their impulses as they come, from chance. And Chance here means Nature. It is from heredity, digestion, the weather, and the association of ideas, that the motives of the Conditioners will spring.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Mais poesia brasileira

Desta vez com Cecilia Meireles, uma grata redescoberta. Romanceiro da Inconfidência deve ter surpreendido os contemporâneos pela forma relativamente comportada -- os 'romances', 84 neste romanceiro, são feitos em redondilhas (versos de 5 ou 7 silábas) com rimas nos versos pares. A forma medieval cabe bem: a temática épico-lírica é o de que Meireles precisava para narrar uma sublevação que, em tese ao menos, foi também épica (em se tratando de história brasileira, sabemos que não é bem assim). A declamação dessas composições era usualmente acompanhada por instrumentos musicais, daí a necessidade da rima.

O tema apequena o livro, é claro, mas está longe de estragá-lo. O que há de épico no alferes Tiradentes é não tanto sua coragem, que não chego a questionar, quanto sua precipitação. Quando a derrota já está certa, o poeta nem sequer pode lamentar a força do adversário, condição necessária para um embate honesto: lamenta (ou deveria lamentar) o despreparo e a mesquinharia do grupo de revoltosos. Não à toa meus romances preferidos nada têm que ver com o enredo em si. Vamos a um deles:
Romance LXXIV ou Da Rainha Prisioneira
Ai, a filha da Marianinha!
Ai, a neta do Rei D. João!
- suave princesa de maõs postas,
resplandecente de oração...
Que lindas letras desenhava
a sua delicada mão:
grandes verticais majestosas,
curvas de tanta mansidão!
MARIA - nome de esperança,
MARIA - nome de perdão,
- a melancólica princesa
livre de toda ostentação,
que há de subir a um trono amargo,
como todos os tronos são!

A que crescera entre as intrigas
de validos, nobres, criados,
a que conversara com os santos,
a que detestara os pecados!
A que soube de tanto sangue,
por engenhos de altos estrados,
quando a nobreza sucumbia,
nos fidalgos esquartejados!
A que vira o pasmo do povo
e a estupefação dos soldados...

A que, amarrada em seus protestos,
pusera silenciosos brados
em grandes lágrimas abertas
nos olhos, para o céu voltados...

A que um dia fora aclamada,
envolta em vestes lampejantes,
onde o que não fosse ouro e prata
era de flores de brilhantes...
A que de olhos tristes mirara
paisagens, miltidões, semblantes,
sentindo a turba alucinada,
em vãos transportes delirantes,
sabendo que reis e reinados
são sempre penosos instantes...
A que em missal e crucifixo
a mão pusara, e aos circunstantes
fizera ouvir seu juramento,
sob estandartes palpitantes!

A que mandara abrir masmorras,
a que desprendera correntes,
a que escutara os condenados
e libertara os inocentes;
a que aos sofredores antigos
levava consolos urgentes;
a que salvava os desvalidos,
a que socorria os doentes;
a que dava a comer aos pobres
com suas mãos clementes;
a que chorava pelas culpas
de seus mortos impenitentes,
e suplicava a Deus piedade
para seus ilustres parentes!...

A que se preservara isenta
sobre os desencontros humanos:
sem soldados e sem navios,
entre os irados soberanos
de Espanha, de França e Inglaterra
e os rebeldes americanos
- com os olhos além deste mundo,
nessa evasão de meridianos
que não compreendem os ministros
- e muito menos os tiranos -
de quem vê na terra a falência
de todos os mortais enganos...
A que achava, no ódio, o pecado.
A que achava, na guerra, os danos...

A que tentara erguer-se a esferas
de Arte, de Ciência e Pensamento...
A que ao serviço de seu povo
dedicara cada momento...
A que se acreditara livre
de qualquer decreto sangrento...
- quando os horizontes moviam
grandes ondas de roxo vento;
- quando em cada livro se abriam
outras leis e outro ensinamento;
- quando o tempo da realeza,
em súbito baque violento,
desabava das guilhotinas,
sobre um grosso mar de tormento.

Ei-la, sem pai, marido, filhos,
confessor, - ninguém - acordada
em seu Palácio, à densa noite
erguendo voz desesperada,
perguntando pelo seus mortos,
pela sua ardente morada...
Ei-la a sentir o Inferno vivo,
a família toda abrasada,
e os Demônios com rubros garfos,
esperando a sua chegada
E seu corpo já transparente,
e já dentro dele mais nada.
E os corcéis da Morte e da Guerra
a escumarem na sua escada.

Ei-la a estender pelas paredes
sua desvairada figura...
A que, embora piedosa e meiga,
pelo poder da desventura,
degredava e matava - longe -
com sua clara assinatura...
Ei-la aos gritos, à sombra verde
dos jardins de aquosa frescura.
Clama por ela Inconfidentes
que a funda masmorra tortura.
E ela clama aos ares esparsos...
E a Liberdade que procura
é por flutuantes horizontes,
no fusco império da loucura.

Ai, a neta de D. João Quinto,
filha de D. José Primeiro,
presa em muros de fúria brava,
mais do que qualquer prisioneiro!
- Terras de Angola e Moçambique,
mais doce é o vosso cativeiro!
- Transparentes, vossas paredes,
prisões do Rio de Janeiro!
Ai, que a filha da Marianinha
jaz em cárcere verdadeiro,
sem grade por onde se aviste
esperança, tempo, luzeiro...
Prisão perpétua, exílio estranho,
sem juiz, sentença ou carcereiro...

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Carta a Stalingrado

Segundo rezam os manuais de literatura, A Rosa do Povo, publicado, se não falha a memória, em 1945, é o livro de Carlos Drummond de Andrade mais explicitamente dedicado aos problemas sociais que abalavam o mundo à época. Não sem boa dose de curiosidade mórbida, resolvi ler o livro. Há muitos daqueles poemas ligeiros, engraçadinhos, que nos dizem pouco apesar do estardalhaço que faziam, e há também poemas mais cuidadosamente trabalhados, escritos por um Drummond que deveria ter sido mas não foi (meus preferidos são os narrativos, principalmente O Caso do Vestido e O Elefante). E, como todos já temíamos, encontramos algumas loas aos soviéticos, das quais escolhi a mais constrangedora pra postar aqui. Não conheço a biografia dele pra saber se chegou a se retratar em algum momento (o certo é que teve tempo mais que suficiente), mas isso é indiferente agora. O mal do artista brasileiro é errar até quando acerta.
Stalingrado...
Depois de Madri e de Londres, ainda há grandes cidades!
O mundo não acabou, pois que entre as ruínas
outros homens surgem, a face negra de pó e de pólvora,
e o hálito selvagem da liberdade
dilata os seus peitos, Stalingrado,
seus peitos que estalam e caem,
enquanto outros, vingadores, se elevam.

A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais.
Os telegramas de Moscou repetem Homero.
Mas Homero é velho. Os telegramas cantam um mundo novo
que nós, na escuridão, ignorávamos.
Fomos encontrá-lo em ti, cidade destruída,
na paz de tuas ruas mortas mas não conformadas,
no teu arquejo de vida mais forte que o estouro das bombas,
na tua fria vontade de resistir.

Saber que resistes.
Que enquanto dormimos, comemos e trabalhamos, resistes.
Que quando abrimos o jornal pela manhã teu nome (em ouro oculto) estará firme no alto da página.
Terá custado milhares de homens, tanques e aviões, mas valeu a pena.
Saber que vigias, Stalingrado,
sobre nossas cabeças, nossas prevenções e nossos confusos pensamentos distantes
dá um enorme alento à alma desesperada
e ao coração que duvida.

Stalingrado, miserável monte de escombros, entretanto resplandecente!
As belas cidades do mundo contemplam-te em pasmo e silêncio.
Débeis em face do teu pavoroso poder,
mesquinhas no seu esplendor de mármores salvos e rios não profanados,
as pobres e prudentes cidades, outrora gloriosas, entregues sem luta,
aprendem contigo o gesto de fogo.
Também elas podem esperar.

Stalingrado, quantas esperanças!
Que flores, que cristais e músicas o teu nome nos derrama!
Que felicidade brota de tuas casas!
De umas apenas resta a escada cheia de corpos;
de outras o cano de gás, a torneira, uma bacia de criança.
Não há mais livros para ler nem teatros funcionando nem trabalho nas fábricas,
todos morreram, estropiaram-se, os últimos defendem pedaços negros de parede,
mas a vida em ti é prodigiosa e pulula como insetos ao sol,
ó minha louca Stalingrado!

A tamanha distância procuro, indago, cheiro destroços sangrentos,
apalpo as formas desmanteladas de teu corpo,
caminho solitariamente em tuas ruas onde há mãos soltas e relógios partidos,
sinto-te como uma criatura humana, e que és tu, Stalingrado, senão isto?
Uma criatura que não quer morrer e combate,
contra o céu, a água, o metal, a criatura combate,
contra milhões de braços e engenhos mecânicos a criatura combate,
contra o frio, a fome, a noite, contra a morte a criatura combate,
e vence.

As cidades podem vencer, Stalingrado!
Penso na vitória das cidades, que por enquanto é apenas uma fumaça subindo do Volga.
Penso no colar de cidades, que se amarão e se defenderão contra tudo.
Em teu chão calcinado onde apodrecem cadáveres,
a grande Cidade de amanhã erguerá a sua Ordem.

domingo, 5 de julho de 2009

Vocação de escritor

Fico me perguntando com que frequência os aspirantes a escritor de hoje ouvem comentários do tipo 'Não, filho, você realmente não leva jeito pra coisa' ou simplesmente 'Desista'. Vivemos numa época superficialmente suave: gostamos de evitar confrontos sempre que possível. Por imposição do dia-a-dia, os praticantes de outros ofícios inventam testes mais ou menos objetivos pra desqualificar os aspirantes menos talentosos; já o aspirante a escritor nunca pode ser desenganado; há sempre a possibilidade longínqua de ele ser um gênio incompreendido, um homem à frente de seu tempo. E, como não há humilhação maior do que ser aquele que não reconheceu um homem à frente de seu tempo (isso significa não ser você mesmo um homem à frente de seu tempo!), seguimos com as abstrações conciliadoras.

A desculpa do gênio incompreendido é infalível porque pode sempre ser postergada: se o gênio demora décadas pra aflorar, longe de significar que ele não existe, significa apenas que é mais sofisticado do que suspeitávamos. É a revolução do proletariado no contexto da criação literária: nunca chega e, por isso mesmo, subsiste no pensamento.

É um tanto frustrante ver bons leitores se obrigando a tentar ser bons escritores de ficção. Não seria frustrante se ainda houvesse quem lhes falasse sinceramente -- penso logo na figura do professor que não está muito preocupado com a auto-estima do pupilo. Os exercícios juvenis são úteis pra desenvolver potencialidades, é claro, mas também são úteis pra fazê-lo perceber que essa não é a sua praia. Convenhamos: não se trata de grande calamidade. Muito ao contrário, se isso fizer com que seu filho troque a faculdade de Letras pela de Medicina, já temos um grande benefício...

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Breakfast

Percebi essa semana que o simples termo breakfast desperta minha fome. Estava folheando a esmo um volume de estórias curtas do Fitzgerald e encontrei o seguinte parágrafo:
This is a story of the Washington family as Percy sketched it for John during breakfast.
A perspectiva de ouvir uma estória interessante em meio a croissants e panquecas já é bastante animadora. O café-da-manhã deve exercer uma atração especial sobre mim porque geralmente não sinto fome pela manhã. É bom que os pães de queijo, a geléia, as frutas, os sucos, o café e o leite, o bolo, as torradas etc., todos imaginários, permanecem intactos, adornando um sonho em forma de banquete potencial. Sempre que encontrá-los, poderei perguntar:
Hello Breakfast, may I buy you again, tomorrow?

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Conservadorismo & Capitalismo

O fato de esquerdistas notórios serem avessos ao sistema capitalista (algo cada vez menos comum nos dias de hoje) criou a ilusão de uma parceria estratégica entre direita e capitalismo, ou, pior ainda, entre conservadorismo e capitalismo. É certo que direitistas devem ser capitalistas, mas também é certo que devem ser muito mais que isso. O capitalismo é um elemento necessário mas não suficiente, como diriam os matemáticos: é necessário porque não há alternativa; e, longe de ser suficiente, pode funcionar até como elemento destrutivo. Alguns dos elementos conservadores por excelência são muito comumente alienados na grande cidade; a dissolução de valores tradicionais é com frequência representada pela impessoalidade da megalópole e do burocrata dinheirista. Chega a surpreender que a Igreja, e que os críticos conservadores em geral, sejam ao menos levemente anti-capital? Não. Se é verdade que o capitalismo cria distinções úteis, é necessário algo que lhe dê sustentação, ou seremos vítimas de uma hierarquia que muda sempre. Russell Kirk a esse respeito:
This network of personal relationships and local decencies was brushed aside by steam, coal, the spinning jenny, the cotton gin, speedy transportation, and the other items in that catalogue of progress which school-children memorize. The Industrial Revolution seems to have been a response of mankind to the challenge of a swelling population: "Capitalism gave the world what it needed," Ludwig von Mises writes sturdily in his Human Action, "a higher standard of living for a steadily increasing number of people." But it turned the world inside out. Personal loyalties gave way to financial relationships. The wealthy man ceased to be magistrate and patron; he ceased to be neighbor to the poor man; he became a mass-man, very often, with no purpose in life but aggrandizement. He ceased to be conservative because he did not understand conservative norms, which cannot be instilled by mere logic -- a man must be steeped in them. The poor man ceased to feel that he had a decent place in the community; he became a social atom, starved for most emotions except envy and ennui, severed from true family-life and reduced to mere household-life, his old landmarks buried, his old faiths dissipated. Industrialism was a harder knock to conservatism than the books of the French egalitarians.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

A mentalidade conservadora

Se tivéssemos de aceitar os critérios que o Russell Kirk, no The Conservative Mind, estabelece pra identificar o imaginário conservador, seríamos forçados a admitir que popular o conservador não pode ser; não hoje. É certo que já houve tempos mais propícios, mas o conservador não está tão em descompasso com a realidade atual quanto gostariam seus detratores. Alguns desses últimos acreditam piamente que:

(i) O conservador não tem senso de humor;
(ii) O conservador tem uma vida social subdesenvolvida;
(iii) O conservadorismo é mais reação que ação, mais inerte que criativo;
(iv) O conservador age por instinto e é intelectualmente despreparado.

Nem seria necessário chafurdar a biografia de conservadores notórios pra verificar que o primeiro item é falso. À medida que os adágios conservadores perdem popularidade, ganha importância a maneira com que são repetidos, e o humor parece ser o artificio mais eficiente nesse processo de reinvenção. Nelson Rodrigues conseguia lamentar o hábito feminino de usar biquinis em plena luz do dia sem parecer um velho recalcado; Chesterton exaltava a coerência de um conto de fadas sem parecer infantil. Isso pode não ser engraçado, mas é bom humor.

Quanto à vida social: essa sim é uma noção engraçada, e eu não saberia explicá-la de outra forma que não a tendência natural que pessoas que pensam de maneira semelhante têm de se unir. A maioria dos meus amigos tende à direita e nem por isso bebe ou se diverte menos que o estritamente recomendável. Se você é esquerdista e acha que só esquerdistas têm capacidade de pular feito um condenado na balada, fique sabendo que o mau gosto não é privilégio de uma banda do espectro político. Os de bom gosto tampouco são reclusos: sentam num bar e ponderam quantos anjos cabem num copo de cerveja.

A primeira metade do terceiro item até faz sentido: o conservador desconfia de mudanças abruptas, o que não significa dizer que não reconheça a necessidade de mudanças. Uma desvantagem prática disso é que grandes talentos e mentes impetuosas tendem a encontrar alguma resistência no corpo conservador. A vantagem é que as mudanças, quando indispensáveis, são bem menos destrutivas quando supervisionadas por um conservador criativo. Isso nada tem a ver com inércia, como queria F. J. C. Hearnshaw -- It is commonly sufficient for practical purposes if conservatives, without saying anything, just sit and think, or even if they merely sit --, mas com conciliação de tempos incompatíveis.

O instinto, ou prejudice, realmente não costuma ser ignorado pelo bom conservador, mas daí a acreditá-lo intelectualmente pobre vai um grande salto. Um salto que, aliás, ignora as grandes inteligências que se tornaram, voluntariamente ou não, expoentes do conservadorismo: Edmund Burke, John Adams, S. T. Coleridge, J. H. Newman, Irving Babbitt, George Santayana, T. S. Eliot e o próprio Kirk. Há aqueles que enfatizam valores transcendentais (Burke, Kirk, Newman), outros que se concentram na esfera política (Adams), outros que valorizam a imaginação conservadora mais que tudo (Coleridge, Eliot) e outros que se ocupam principalmente da filosofia por trás da práxis política (Coleridge, Babbitt, Santayana). Já que parecem (e são) tão diferentes, o que os uniria a um núcluo comum? Kirk enumera alguns pontos:

(i) Belief in a transcendent order. Essa é uma condição com a qual Roger Scruton discordaria, e à qual Santayana e tantos outros expressamente não se adequam. Acontece muito de ela ser aceita numa versão adaptada, que consiste em admitir que a razão humana é insuficiente para abarcar toda a existência e que, se os mistérios não são explicáveis através de um plano divino, simplesmente não são explicáveis. Há aqui, porém, a convicção de que todo problema político é no fundo filosófico, e que todo problema filosófico é antes problema religioso.

(ii) Affection for the proliferating variety and mystery of human existence, as opposed to the narrowing uniformity, egalitarianism, and utilitarian aims of most radical systems. Aqui temos o que parece ser unanimidade entre conservadores: diferenças de mérito entre seres humanos existem e podem ser tão grandes quanto se queira imaginar. Num momento em que a tendência é uniformizar tudo (homens e mulheres, velhos e jovens, bons e maus), repetir esse truísmo conservador exige, e esse é o apelo de Kirk, a engenhosidade de uma criatividade conservadora, capaz de reabilitar obviedades rejeitadas.

(iii) Conviction that civilized society requires orders and classes, as against the notion of a "classless" society. Consequência direta de (ii): o nascimento, ou o mérito, ou o casamento, ou mais raramente a sorte, ou todos juntos, determinam que lugar na sociedade devemos ocupar. A supressão de qualquer tipo de ordem levaria -- numa objeção que é mais de ordem prática que de princípio -- ao predomínio de oligarquias, num regime em que todos são servos da igualdade.

(iv) Persuasion that freedom and property are closed link. Observação simples da realidade.

(v) Faith in prescription and distrust of "sophisters, calculators and economists". Relendo os quatro itens anteriores, percebo que não poucos dos chamados liberais ou libertários assentiriam completamente, sendo o primeiro item com muita probabilidade o mais disputado. Essa quinta condição representa outro ponto de divergência: o conservador desconfia dos sofistas mesmo quando (ou principalmente quando) ele diz ser o estandarte da ciência e da racionalidade. Os números dos melhores economistas podem ser enganosos; as abstrações de filantropos podem levar a ruínas bem concretas.

(vi) Recognition that change may not be salutary reform: hasty innovation may be a devouring conflagration, rather than a torch of progress. Society must alter, for prudent change is the means of social preservation; but a statesman must take Providence into his calculations, and a statesman's chief virtue, according to Plato and Burke, is prudence.

Se você simpatiza com os seis princípios enumerados acima e não usa tênis all-star, sinta-se bem-vindo ao clube.

domingo, 17 de maio de 2009

CXLIII - The Old Man and Death

An old man who had traveled a long way with a huge bundle of sticks became so weary that he threw his bundle down on the ground and called upon death to deliver him from his most miserable existence. Death came straight to his side and asked him what he wanted.

"Please, good sir," he said, "do me a favor and help me lift by burden again."

It is one thing to call for death and another to see him coming.

terça-feira, 12 de maio de 2009

Somos todos newtonianos

Se você é um daqueles que odiava física na época do ensino médio, e que deu graças aos deuses por nunca mais ter que ver pêndulos, bloquinhos suspensos com roldanas ou deslizando por cunhas depois do vestibular, digo apenas que você é tão newtoniano quanto qualquer outra pessoa viva. Termos como 'força', 'potência', 'movimento' etc. são entendidos por todos exatamente como Newton os entendia, e exatamente em oposição ao entendimento que havia antes dele.

Um exercício simples pra provar isso é tentar imaginar, da maneira mais simples possível, uma 'força'. Muitos devem imaginar uma setinha entrando ou saindo de um bloco; outros tantos devem imaginar uma pessoa ou objeto sendo empurrado. Os mais criativos podem visualizar um campo de forças, uma espécie de luminosidade que circunda um, por exemplo, super-herói, e que tem o efeito de empurrar ou atrair objetos à distância. Mas isso nada mais é que o efeito à distância, uma idéia newtoniana por excelência.

Quando falamos em 'movimento', poucos devem ser os que não pensam logo em deslocamento físico. Quando falamos em 'potência', poucos devem ser os que não pensam logo na capacidade de realizar trabalho (trabalho físico -- transformação de energia), ou mais especificamente num motor, num velocímetro ou coisas do tipo. Aristóteles não era newtoniano ao falar em primeiro 'motor' ou na capacidade de 'mover' os homens; nós que somos newtonianos ao interpretá-lo dessa maneira.

A teoria ondulatória da luz sofreu certa resistência porque os newtonianos da época acreditavam que a luz era composta por partículas que se chocavam como bolas de bilhar. A refração seria, então, uma simples mudança de velocidade dessas partículas. Só a hipótese ondulatória explica, porém, fenômenos como a difração da luz (v. figura abaixo). O que fazer para convencer-nos, os newtonianos? Pensar nas ondas do mar, que uma vez quebradas produzem 'força' e 'movimento'.

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Muito canibalismo para um só dia

Acabo de ver o The Silence of the Lambs pela primeira vez. Confesso que há cenas bem perturbadoras, tão perturbadoras que podem até comprometer o churrasco do almoço de amanhã. Se eu por acaso vislumbrar Clarice Starling tentando salvar um cordeiro (ou tentando roubar minha carne), terei como consolo o fato de estar, bem, vendo Clarice Starling. Quando já me supunha livre de canibalismos, começa a tocar Cannibal's Hymn, cujo refrão acredito ter sido escrito para a Starling:
But if you're gonna dine with them cannibals
Sooner or later, darling, you're gonna get eaten
But I'm glad you've come around
here with your animals
And your heart that is bruised but bleating
And bleeding like a lamb

sábado, 25 de abril de 2009

Xarope necessário

Sempre que alguém afirma, eu incluso, que é nada menos que impossível modelar o planeta terra e sair fazendo previsões de temperatura para daqui a 50 anos, aparecem os prosélitos da Ciência Infalível citando esse ou aquele estudioso dessa ou daquela renomada universidade. Não fazem a mais mínima idéia do que estão falando, mas se um professor da UFbolinha lançou um artigo a respeito é porque deve ser verdade. Uma primeira maneira de desconfiar disso tudo é visitar a página do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos, do INPE, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, aqui. Lá vocês podem ver que a probabilidade de chuva em Goiânia hoje, 25 de abril, é de 70%. Isso mesmo, colegas: os pesquisadores do INPE não sabem dizer com certeza se hoje chove em Goiânia.

Analisar a possibilidade de chuva hoje parece bem mais simples que prever a temperatura média mundial daqui a 1 ano, não? Basicamente tenho que verificar temperaturas, concentração e movimentação de nuvens e massas de ar, umidade relativa do ar etc. Muita gente hesita em duvidar da mecânica dos fluidos porque, ao que parece, as coisas funcionam perfeitamento por todos os lados: medidores de pressão, barragens, encanamentos d'água, prensas hidráulicas etc. Tampouco há o hábito de duvidar da disciplina de transferência de calor: nossos aparelhos de ar condicionado e climatizações em geral funcionam que é uma beleza. Isso porque o engenheiro é, ou deveria ser, como um cavaleiro do Zodíaco: não comete o mesmo erro duas vezes. Tudo o que pode ser empiricamente testado é cedo ou tarde absorvido; se queremos monitorar a queda de pressão numa tubulação de óleo, metemos um medidor lá e pronto. Quando se trata de fazer previsões teóricas, a situação é bem outra. Antes que me acusem de falar sem dar exemplos, como já fizeram, lá vai um (preparem-se, é a parte chata do post):

Vamos modelar o escoamento de um fluido qualquer no espaço. Aplicando a segunda lei de Newton a uma volume de controle do fluido (uma espécie de paralelepípedo imaginário que contém uma porção do fluido), e supondo que todas as forças envolvidas são ou de viscosidade, ou de diferença de pressão, ou de corpo (como a gravitacional ou a elétrica), chegamos às famosas equações de Navier-Stokes, escritas abaixo para as três direções cartesianas:




Nas equações acima, 'rô' é a densidade do fluido, suposta constante (que conveniente, não?), 'u', 'v' e 'w' são, respectivamente, as velocidades nas direções x, y e z de uma partícula qualquer do fluido, 'p' é a pressão, 'mi' é um coeficiente de viscosidade e os g's são as gravidades relativas às forças de corpo em cada direção (se quisermos considerar apenas a força gravitacional, g = 0 para x e z e g = g para y). Trata-se de um sistema de equações diferenciais parciais não-homogêneas de segunda ordem (porque tem derivadas parciais de segunda ordem e o termo independente é não-nulo). Ele deve ser resolvido juntamente com a equação da continuidade (conservação da massa) e o que importa saber é que não há solução exata para ele. Vejam que mesmo depois de várias hipóteses simplificadoras (escoamento incompressível e laminar -- a altas velocidades e com geometria propícia o escoamento torna-se turbulento e nem equações que não conseguimos resolver temos mais; ficamos soltos no campo do puramente empírico) chegamos a um sistema sem solução explicíta; podemos tentar algum método numérico, mas nem o mais moderno computador consegue resolvê-lo sem simplificações adicionais.

Apenas versões bastante simplificadas das equações de Navier-Stokes possuem solução exata. Por exemplo, como no exemplo da figura abaixo, podemos supor que o escoamento se dá apenas na direção y (ou seja, u e w são iguais a 0) e que, com escoamento pleno, a velocidade em y depende apenas de x, isto é, v = v(x). 'Aí fica fácil', diria Joãozinho. Pois é. Mas aí surgem outros problemas: as placas são infinitas? Como levar em conta a formação de vórtices nas bordas?

Nesse exemplo nem sequer falamos em temperatura. Transferência de calor por convecção é um inferno (no pun intended) e depende incertamente de valores que por si só já são difíceis de obter, como os mostrados acima. Como vocês imaginam, então, que deve ser a modelagem de correntes oceânicas ou de ar, em que nenhuma ou poucas das simplificações mencionadas aqui são aceitáveis, e para as quais não podemos contar com uma geometria bacaninha pra guiar o escoamento? E a incidência de radiação solar? E a influência das nuvens? E...

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Links

Por muito tempo tive o esquisito (e, parece, ingrato) hábito de escrever num blog sem acompanhar blogs de outras pessoas. Conheci vários recentemente e percebi que há links para o Parnaso em alguns deles. Tardou mas resolvi retornar o favor: se você me linkou e ainda não está aparecendo aqui ao lado, é só me avisar. Até.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Eles merecem

Há uns anos, fui malhado em sala de aula por dizer que cada povo tem o governante que merece. Nem sei quem disse isso pela primeira vez; vai que é ditado popular em algum lugar, de tão antigo. Está claro que não se pode responsabilizar um bebê iraniano de poucos anos pelo enpossamento de Ahmadinejad, mas, creio, entende-se bem o que o aforisma quer dizer. Essa relação de responsabilidade pode por vezes ser bem complicada, como o crescendo de anti-semitismo europeu que deu a uma figura como Hitler taxas apreciáveis de popularidade.

Às vezes ela nada tem de complicada. Escrevo isso porque vi hoje mesmo evidência adicional para a minha declaração de há uns anos. Trata-se de exemplo único, um tijolo num muro que, porém, já vai alto. Vejam:
Hoy con alegría revolucionaria constatamos como se desarrollan en nuestra America Latina esfuerzos y cristalizan iniciativas tendientes a buscar la unidad, el progreso socio-económico y la integración Latinoamericana como: el Mercosur, ALBA, Petrocaribe, Telesur, Banco del Sur, satélite Simon Bolivar y otros proyectos de ayuda mutua, cooperación y solidaridad. América Latina despertó, está de pie y marchando por senderos libertarios y socialista después de décadas de sojuzgamiento y dominación imperialista. Las hermanas república de: Bolivia, Ecuador, Brazil, Uruguay, Cuba, Nicaragua. Paraguay y con reservas y dudas Chile, entre otros, así como algunos países del Caribe cuentan con gobiernos progresistas que han empezado el deslinde, distanciamiento e incluso ruptura respecto a las políticas neoliberales, adoptando políticas nacionalistas y populares de defensa y rescate de los recursos y riquezas naturales y de reafirmación de su soberanía, planteándose en nuestro caso particular por el comandante presidente Hugo Chávez como el denominado socialismo del siglo XXI, que comparte principios fundamentales con el socialismo clásico, en especial la idea de la supremacía del ser humano y de su trabajo sobre el capital.
O trecho acima foi escrito por um venezuelano que fez intercâmbio nos EUA junto comigo, em 2003. É meritório que tenha ao menos ido visitar a matriz do imperialismo opressor, mas é certo que não aprendeu nada. Se não me recordo mal, o sujeito não era de todo desagradável, apesar daquele entusiasmo meio bobo típico de latinos. Guardada a minha compaixão pelos venezuelanos da oposição, que obviamente não são poucos, apenas digo: eles merecem.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

E o jantar?

Aproveito o momento amargo, de derrota, para declarar minha simpatia pelo tricolor paulista. Ontem, no Morumbi, tomei o cuidado de ficar o mais distante possível da(s) torcida(s) organizada(s). Fiz bem, mas ainda tive a oportunidade de verificar como o torcedor brasileiro é ingrato: os supostos heróis do início do jogo eram os mesmos 'filhos da puta' do final.

Enquanto os mais exaltados xingavam jogadores e familiares do juiz, as mulheres, percebendo que o jogo estava perdido, batiam fotos para os filhos e discutiam sobre o que teriam para o jantar. São más torcedoras, mas priorizam o que há de realmente importante nesta vida.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Um velho conservador

A figura de António Sousa Homem é, de longe, a que mais me diverte dentre todas as figuras divertidas que a blogosfera nos proporciona. Segundo consta, acaba de completar seus oitenta e nove anos e habita calmamente o 'eremitério' de Moledo, no coração do Minho. É visitado por irmãos e sobrinhos e, por opção bem calculada, já não pode compreendê-los tão bem. O interlocutor usual de Sousa Homem são a própria memória e as sombras que daí retira: o velho doutor Homem, seu pai; seu avô; Tio Alberto; Tia Benedita. Maria Luisa, uma sobrinha, de vez em quando aparece como que para atestar a transitoriedade dos tempos.

Sousa Homem é um resignado ('conheço esses caminhos por razões médicas, tentando aliviar os pulmões e despertar neles o desejo de continuarem a respirar'), e isso já seria suficiente pra fazer muita gente franzir o sobrolho. De fato,
Desiludi uns e diverti outros. Expliquei aos meus sobrinhos que não, que nunca tive uma adolescência revolucionária e barbuda. Há cinquenta anos eu esperava da vida o que ainda hoje acho decente esperar-se: um perfume de mimosas numa estrada do Minho. Era um conservador e sou um conservador, um hibisco que muda de folha na altura certa e que aceita a dádiva da fortuna e da metereologia.
Desiludiram-se os sobrinhos, 'que preferiam ver-me como um velho anarquista que tivesse passado o melhor tempo da sua juventude colocando bombas à porta de bancos, ou assaltando a tradição da família para que me declarasse democrata e republicano'. Desiludiram-se as irmãs, que não viram as paixões do irmão mais velho, também elas transitórias, concretizarem-se em matrimônio. Mas restaram os livros, e os contemporâneos que já partiram.

Um desses livros é o The Anatomy of Melancholy, de Robert Burn, herdado do velho doutor Homem, seu pai. Sousa Homem parece saber muito sobre a melancolia, mas não vê nisso motivo para desespero ('cada dia que acrescento à minha idade é um dia para agradecer à providência'); longe disso, entende, assim como seu pai, que os sacrifícios que somos forçados a fazer servem como bálsamo para a juventude. Eis aí a melhor resposta para bombas em portas de bancos: o encolher de ombros de quem tem uma família para cuidar.

Muitos devem achar, a exemplo de sua irmã mais nova, que Sousa Homem simplesmente se recusou a dobrar o século ('ela tem a impressão de que eu pertenço, não a este mundo, mas aos calendários que vão passando de moda -- gosto da imagem e não me ofendo), ou que, assim como o condenado de Nick Cave, he goes shuffling out of life, just to hide in death awhile. Mas Sousa Homem não se esconde em lugar nenhum, a menos que se considere o eremitério de Moledo, no coração do Minho, um esconderijo.

terça-feira, 14 de abril de 2009

A autoridade dos posts ad hoc

Uma das vantagen de um blog pequeno é poder malhar quem melhor nos aprouver sem muito risco de receber uma resposta, mais ou menos como quem joga tomates e se esconde atrás de uma porta. Adriano Correia me viu jogando um tomate e não gostou, veja aqui por quê. Não vou responder porque, bem ou mal, já tentei comentar todas as questões ali contidas -- o princípio de autoridade, o verdadeiro/verossímil etc. --, bastando ao mais interessado dirigir-se à categoria Religião ao lado.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

A autoridade das idéias ad hoc

Na era da informação, o simples fato de termos uma idéia, somado à constatação de que não somos completos idiotas (no nosso próprio julgamento), já confere à idéia em questão um caráter oficioso, passível de publicação em manual didático num futuro próximo. Como não há quem queira entrar em disputa, por cordialidade ou ignorância mútua, as idéias ad hoc só se diferenciam pela inventividade e pelos malabarismos retóricos de seus autores. Dou um exemplo recente:

E voltando ao Velho Testamento: Moisés anunciar para um bando de retirantes que não deveriam olhar para a mulher do próximo faz bastante sentido quando se quer diminuir o número de crimes passionais em suas hordes.

As idéias ad hoc geralmente se apresentam como acima: algo tido como verdadeiro séculos afora é repentinamente desacreditado graças a um detalhe circunstancial que, curiosamente, todos os que vieram antes de nós, esses bobinhos, não conseguiram perceber. Também geralmente, o detalhe circunstancial é de ordem administrativa. "É muito conveniente que a lei da gravidade funcione, ou não poderíamos erguer prédios" serve como prova de que não poderia existir um universo sem lei da gravidade. Se pressionados, os autores das idéias ad hoc lembrarão que não estão a fornecer provas, apenas sugestões 'plausíveis', apesar de no íntimo de suas almas acreditarem piamente que acabaram de desferir um golpe mortal contra o edifício da tradição.

Adicionalmente, essas idéias propõem soluções bem mais simples, uma espécie de massificação da navalha de Occam. É como se dissessem: "joguem fora todos os seus livros de História, o que se julga conveniente hoje deve ter sido conveniente para todos os homens em todos os tempos". Se um dos mandamentos pode ser explicado circunstancialmente, por que não fazê-lo, ainda que ele seja válido independentemente das circunstâncias, inclusive quando elas se mostram adversas?

Dou outro exemplo, cuja fonte não consegui recuperar: o cristianismo tornou-se a religião oficial do império romano porque era muito 'conveniente' aos imperadores ter súditos que aceitavam dar a Deus o que é de Deus e a César o que é de César. Nunca antes vimos idéias tão ambiciosas, nem tão falsas.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Homens e mulheres tais como nasceram

Dia desses presenteei-me com dois livros da Jane Austen, Pride and Prejudice (pois é, nunca tinha lido) e Emma. Diferentemente dos últimos 5 ou 6 livros de ficção que tinha lido, dessa vez não me decepcionei. Jane Austen é a romancista predileta de Paul Johnson e recebeu elogios entusiásticos de Sir Walter Scott e Somerset Maugham, mas por muito tempo permaneci incrédulo. Antes que falem em machismo, a própria Austen explica o porquê, ao comentar, através de Emma, uma carta de Mr Martin: I can hardly imagine the young man whom I saw talking with you the other day could express himself so well, if left quite to his own powers, and yet it is not the style of a woman; no, certainly, it is too strong and concise; not diffuse enough for a woman.

Afora questões estilísticas, o alívio maior é perceber que homens e mulheres, interessantes ou não, aparecem nesses livros tais como nasceram e se criaram, não como subprodutos de uma construção ideológica. Os homens interessantes são interessantes como apenas homens poderiam ou tenderiam a ser: discretos, gentis, instruídos e corajosos. Idem para os desinteressantes: aduladores, insensíveis e deselegantes. Já as heroínas de Austen são perspicazes sem ser exageradamente atrevidas, e as figuras femininas que comandam nossa simpatia são atenciosas e singelas, quando não submissas. As que inspiram nosso descaso são, como não poderiam deixar de ser, frívolas e namoradeiras.

Deve causar certa estranheza que, apesar disso, os enredos de Austen sejam populares até hoje. Um dos motivos por que daqui a dez anos ninguém vai lembrar de Brokeback Mountain e As Horas e outros tantos filmes/livros recentes é que, neles, sempre que se quer destacar a importância de um sexo, diminui-se a do outro. Qualquer homem que se queira interessante num ambiente como o de As Horas deve ter características eminentemente femininas etc. Felizmente esse não é o tipo de homem que chamaria a atenção de Lizzy Bennet ou de Emma. Ou melhor, chamaria sim, apenas para ser justamente execrado.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Post sobre o jornalismo brasileiro

O conservador brasileiro, não sem certa razão, sempre se refere com um nojinho incontido às peripécias que enchem os jornais. Muito mais edificante falar sobre poesia, religião ou Monica Bellucci. Há aí um problema de prioridades: como disse o Pereira Coutinho numa entrevista recente, discutir detalhes teológicos no país do mensalão é como querer dançar valsa na tempestade, ou algo assim. Ouçamos o filósofo Paulo Betti: às vezes é preciso sujar as mãos.

A situação da Veja é particularmente irritante. Se existe uma revista que deve inspirar preocupação, essa revista é a Veja, que é a mais lida. E quem mais escreve nela, pelo menos nas últimas edições, é o Andre Petry: tem uma coluna e é responsável pelas matérias sobre as eleições nos EUA. Vejam as bobagens que o sujeito é capaz de escrever: O que mais provocou a simpatia mundial por Obama, conforme se lê nas pesquisas feitas em dezenas de países, é um conjunto de características para as quais Obama jamais chamou atenção porque espanta o voto do americano médio. A saber: sua negritude, sua urbanidade, seu traquejo político, sua formação acadêmica de elite.

Petry garante que formação acadêmica de elite espanta o voto do americano médio. Agora me ajudem com a contagem de presidentes americanos que frequentaram Harvard: John Adams e seu filho, John Quincy Adams; Theodore Roosevelt; Franklin Roosevelt; John Kennedy. Esses 5 são bem conhecidos; uma googlada rápida fornece o nome de mais dois, Rutherford Hayes e o próprio George W. Bush (master's degree). Em Princeton formaram-se dois, James Madison e Woodrow Wilson. Em Stanford, o engenheiro Hoover. Em Yale, Bush pai, Bush filho e Taft. Um em Goergetown, um em Duke, quatro na William & Mary College, um em Columbia, um em Dickinson, um em Williams. Traquejo político também é impopular, segundo Petry. Não faço idéia de onde ele tirou isso. Então o povo americano prefere os mais burocráticos, os mais enrolados?

Petry repete religiosamente os lugares-comuns mais batidos -- e mais desacreditados por quem se deu ao trabalho de estudar -- sobre a história dos EUA, como afirmar que o New Deal salvou a economia americana pós-29, que a administração de Harding (1921-23) foi a mais corrupta, que Nixon abusou dos poderes de presidente mais que seus antecessores, que quem se opunha ao movimento aboliciosta era necessariamente racista e por aí vai. Ao fazer um balanço do governo de W Bush, lembra displicentemente que Bush chegou dizendo que faria um governo "para unir, não para dividir", e agora entrega um país com duas guerras (Iraque e Afeganistão), um déficit monumental (já na casa do trilhão de dólares) e uma economia em frangalhos (a pior crise desde a II Guerra Mundial), como se a crise econômica fosse de responsabilidade dele e como se a decisão de entrar numa guerra não passasse de mero capricho pessoal (se perguntado, Petry provavelmente responderia que sim, que não passa de mero capricho pessoal).

Num quadro com as colunas 'O mundo pensa que... / Mas os Estados Unidos pensam que...', Petry mostra que não deveria se arriscar a falar por uma nação que ele desconhece, ou conhece apenas através do NY Times: ... o eleito merece todo o entusiasmo de que é objeto, como é natural em qualquer eleitorado do mundo. Torcem para que Obama resolva os problemas (no kidding?), mas não há nenhum sinal (nem procissão, nem comoções públicas, nem pedidos de benção) de que o julguem portador de superpoderes... É de surpreender, então, que eleitores conservadores americanos tenham inventado os epítetos the Anointed One, the Chosen One etc. para Obama -- certamente Petry não considera (mas sabe-se lá, né) desprezível a parcela conservadora do eleitorado americano.

É natural ver simplificações numa revista cujos artigos raramente ultrapassam as duas páginas; pode-se sempre falar em didatismo ou algo que o valha. Difícil de entender é que noções tão bobas -- bobas até entre setores da esquerda americana, principalmente agora que já explodiram os primeiros escandândalos da era Obama -- ocupem tanto espaço no semanário mais lido do país. Quando é na Veja o Reinaldo Azevedo não reclama...

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O Papa Bento XVI é um “des-reformador” e como todos os conservadores, ele quer que tudo esteja igual, que não haja marolas, nem discordâncias, nem heresias. E aí comete gafes papais. O trecho é do Arnaldo Jabor. Segundo Jabor, melhor seria se o papa admitisse heresias; só assim pra evitar 'gafes papais'. Um conselheiro assim é exatamente o que o Vaticano precisava.

Interregnum

Gostaria de poder dizer que tenho um motivo nobre pra estar escrevendo pouco -- emprego novo, fundação de uma ONG pela defesa das criancinhas da Palestina ou organização de uma conferência sobre empreendedorismo social --, mas a verdade é que, sem móveis, fica desconfortável digitar por muito tempo. O pior disso tudo é que me surgem idéias geniais, originalíssimas, que escapolem convenientemente antes que apareça a disposição pra escrever. Vai então um post sobre o jornalismo brasileiro.

domingo, 25 de janeiro de 2009

Hold me closer, tiny dancer

Sábado passado pude ver Elton John executando ao vivo, aqui em São Paulo, algumas das músicas dele de que mais gosto (destaco Tiny Dancer, Good Bye Yellow Brick Road e Believe). O ponto alto do show -- pra mim e, acredito, pro casal que estava ao meu lado -- foi mesmo Tiny Dancer. Enquanto Elton John cantava o refrão -- hold me closer, tiny dancer... -- o casal obedecia e se abraçava ao som de uma balada que fez sucesso quando eles (e eu) não éramos nem nascidos. A voz, está claro, não é a mesma do começo dos anos 70: as notas mais altas ou desapareceram ou foram interrompidas antes que faltasse o fôlego. O mínimo que se pode dizer, porém, é que a melodia sobreviveu ao teste dos tempos. Veja a versão original da música aqui.

Outra grande satisfação foi não ter de ser empurrado de 5 em 5 segundos, apesar de estar razoavelmente perto do palco. Roqueiros mundo afora: aprendam com o exemplo de seus pais!

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

RIP, Neuhaus


I weep, rather, for all the rest of us. As a priest, as a writer, as a public leader in so many struggles, and as a friend, no one can take his place. The fabric of life has been torn by his death, and it will not be repaired, for those of us who knew him, until that time when everything is mended and all our tears are wiped away. -- Joseph Bottum

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Smoking is the new gay

Depois que li esse post fiquei com vontade de dizer que smoking is the new gay. É divertido acompanhar a postura das pessoas diante de características marginais, como fumar, ser conservador, ser judeu etc. Vivemos um momento auspicioso nesse sentido: para quem nasceu no intervalo que vai do final da 2a. grande guerra até meados dos anos oitenta, anti-semitismo (deve ter perdido o hífen, mas dane-se) é absurdo inconteste até pra quem se limita a visitar o cinema nas horas vagas. O bombardeio de obras sobre o Holocausto nos ensina a encará-lo como algo inefável, coisa de maluco mesmo. Faça esse experimento: pergunte a um transeunte qualquer sobre a origem do anti-semitismo; se ele for além da ladainha sobre grandes corporações, concentração de dinheiro e financiamento de guerras, dê-se por satisfeito. Não sei se é só nas ocasiões em que a oportunidade tentadora de malhar a política externa americana aparece (na cabeça dessa gente, EUA = Israel) ou se é algo mais geral, mas até essa aversão instintiva ao anti-semitismo parece estar desaparecendo. Isso mesmo: o governo brasileiro já pode equiparar judeus e nazistas e passar incólume, sem que judeus sovinas saiam cobrando dívidas em carne humana por aí.

Segundo nos conta Hannah Arendt, houve um tempo em que não havia nada mais charmoso que ser judeu -- evidentemente, antes de eles serem de fato odiados. Compreende-se bem: é o charme do diferente, da minoria, do excêntrico. O próprio Disraeli, também ele judeu, teria (ainda não tenho opinião formada sobre ele) contribuído com a pantomima. Pois bem: smoking is the new gay, e isso significa despertar um conjunto amplo mas não ilimitado de reações, a depender do momento histórico, assim como acontece com o gay ou com o conservador. O conservador desperta incredulidade no Brasil de hoje; já nas plantations da Virginia do início do séc. 19, era só mais um. O gay nessas mesmas plantations era um pária; hoje é acolhido e festejado em toda parte, assim como o escravo de ontem é hoje recebido no ensino superior a despeito de seu mérito intelectual. Fico me perguntando, assim como Romerito José inquiria Sto. Agostinho, se chegará a época em que fumantes e conservadores (ou judeus, uma vez mais) serão mandados para o forno, isto é, se tudo muda o tempo todo.

Se não muda, podemos estar certos de que não é graças à constatação, a qual todos os homens chegariam independentemente, de que existem valores atemporais. Alguns poucos chegam a essa constatação e nos fazem o favor, na medida de seus talentos, de incuti-las no imaginário popular. Forçoso é dizer: guiamo-nos por preconceitos bem mais do que estamos dispostos a reconhecer (e vejam que desastre se assim não fosse, se tívessemos de esperar que cada um formasse sua idéia sobre cada bloco civilizacional). Coleridge dizia, e sabemos por experiência, que nem nas classes mais privilegiadas da mais grandiosa civilização seria razoável encontrar mais que alguns poucos dedicados à especulação filosófica. O otimismo dos philosophes parece particularmente ingênuo numa época em que até aritmética básica aterroriza muitos ditos letrados. Os raros momentos em que o homem consegue erguer-se um pouco pra observar sua condição miserável certamente não são obra da tão alardeada Razão. No dizer de Disraeli (de novo ele), It was not Reason that besieged Troy; it was not Reason that sent forth the Saracen from the Desert to conquer the world; that inspired the Crusades; that instituted the Monastic orders; it was not Reason that produced the Jesuits.

O triunfo da imaginação sobre a razão fica evidente se repassamos as idéias que ressoam com mais intensidade entre as intelligentsias: a visão apocalíptica de Marx, os sonhos de Freud, o caos de Derrida. Todas elas têm um quê de inebriante e difuso e, apesar de procurarem se apresentar como flores da racionalidade, são só isso: visões. Visões que dependem de uma imaginação muito poderosa pra fazê-las sobreviver a despeito da e muitas vezes em oposição à racionalidade que dizem representar. Mais que pesquisas científicas desacreditando os males que o fumo causa à saúde, a turma dos fumantes precisa de alguém que nos lembre por que houve um tempo em que era fashionable fumar.