quarta-feira, 25 de abril de 2007

Gogol, O Progressista

Um dos passatempos prediletos da crítica dita progressista é incrementar suas hostes com nomes muito ou pouco notórios. Nikolai Gogol (1809-1852) não poderia ficar de fora. Terminei de ler seu Almas Mortas recentemente e fui informado (o informante pediu para não ser identificado) de que esse romance (ou novela, ou poema, como queria o próprio autor) não passa de uma crítica ao antigo sistema de servidão russo. Ora, meu informante não precisava ter ficado tão acanhado: uma rápida passagem pelo Google deixa patente que essa 'interpretação' não é das mais desconhecidas; de fato, já atingiu o nível de 'palpite seguro', aquele tipo de comentário que sempre pode ser feito em mesas-redondas sem que se corra o risco de passar vergonha. Na maioria das vezes são inofensivos e dispensam maiores explicações, mas esse não parece ser o caso com Gogol. Mais uma vez, somos forçados a não só discordar como a enxergar o contrário, ainda que sob os uivos recriminadores dos progressistas de plantão. "Esses revisionistas", dirão eles, cuspindo pro lado, "insistem em... revisar."

O livro trata de Tchitchikov (na tradução americana), uma raposa muito ladina. Ele chega à cidade provincial de N. com o atípico desejo de comprar, ou conseguir de qualquer outra maneira, 'almas mortas', isto é, servos que morreram desde o último censo. O motivo desse desejo só será descoberto para o leitor muito mais tarde, mas fica sabido que um servo morto permanece oficialmente vivo até que se realize um novo censo, que ocorria a cada dez anos. Os donos das almas tinham o direito de hipotecá-las a 200 rublos a unidade, de vez que, como responsáveis, também tinham de pagar impostos por elas. Tchithikov viu assim uma oportunidade de acumular capital para algum empreendimento futuro. Desde já fica claro que, seja lá o que for, Almas Mortas é antes uma crítica à ineficiência e à burocracia estatal da Rússia czarista a uma rejeição da servidão como um todo.

Isso fica claro desde muito cedo, e dá-nos confirmação a própria figura do cocheiro de Tchitchikov, Selifan, que tinha por hábito conduzir embriagado (de bebida ou de sono ou de ambos) e foi responsável direto de dois acidentes. Os servos em geral são apresentados de maneira bem negativa; são sempre preguiçosos e espertalhões, quando não calham ser desonestos. Parecem requerer vigilância constante de seus senhores e em nenhum momento demonstram autonomia suficiente para cuidar de si mesmos:
Why, that is really strange," said Platonov. "Why is it in Russia that if you don't sharply look after the peasant he becomes a drunkard and good-for-nothing?
Pouco mais adiante, é dado a Murazov, provavelmente a voz mais lúcida em todo o texto, dizer:
Indeed it is not hard to incite a man who is really ill treated. But the fact is that reforms ought not to begin from below. It's a bad business when men come to blows: there never will be any sense from that - it's a gain to none but the thieves. You are a clever man, you will look about you, you will find out where a man is really suffering from the fault of others, and where from his own restless character, and afterwards you will tell me all about it.
Ora, contra escravidão, servidão, massacre sumário de criancinhas e congêneres todo mundo é. Resta saber se faz sentido incluir Gogol num grupo de tresloucados que gostaria de ver o fim da servidão de qualquer maneira, a qualquer custo. Não faz. Essa mania de querer monopolizar a bondade, uma bondade que só é digna de ser assim chamada se se adequa aos padrões 'progressistas' atuais, não deveria enganar ninguém. Certamente não vai enganar quem souber ler direito.

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