quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Post sobre o jornalismo brasileiro

O conservador brasileiro, não sem certa razão, sempre se refere com um nojinho incontido às peripécias que enchem os jornais. Muito mais edificante falar sobre poesia, religião ou Monica Bellucci. Há aí um problema de prioridades: como disse o Pereira Coutinho numa entrevista recente, discutir detalhes teológicos no país do mensalão é como querer dançar valsa na tempestade, ou algo assim. Ouçamos o filósofo Paulo Betti: às vezes é preciso sujar as mãos.

A situação da Veja é particularmente irritante. Se existe uma revista que deve inspirar preocupação, essa revista é a Veja, que é a mais lida. E quem mais escreve nela, pelo menos nas últimas edições, é o Andre Petry: tem uma coluna e é responsável pelas matérias sobre as eleições nos EUA. Vejam as bobagens que o sujeito é capaz de escrever: O que mais provocou a simpatia mundial por Obama, conforme se lê nas pesquisas feitas em dezenas de países, é um conjunto de características para as quais Obama jamais chamou atenção porque espanta o voto do americano médio. A saber: sua negritude, sua urbanidade, seu traquejo político, sua formação acadêmica de elite.

Petry garante que formação acadêmica de elite espanta o voto do americano médio. Agora me ajudem com a contagem de presidentes americanos que frequentaram Harvard: John Adams e seu filho, John Quincy Adams; Theodore Roosevelt; Franklin Roosevelt; John Kennedy. Esses 5 são bem conhecidos; uma googlada rápida fornece o nome de mais dois, Rutherford Hayes e o próprio George W. Bush (master's degree). Em Princeton formaram-se dois, James Madison e Woodrow Wilson. Em Stanford, o engenheiro Hoover. Em Yale, Bush pai, Bush filho e Taft. Um em Goergetown, um em Duke, quatro na William & Mary College, um em Columbia, um em Dickinson, um em Williams. Traquejo político também é impopular, segundo Petry. Não faço idéia de onde ele tirou isso. Então o povo americano prefere os mais burocráticos, os mais enrolados?

Petry repete religiosamente os lugares-comuns mais batidos -- e mais desacreditados por quem se deu ao trabalho de estudar -- sobre a história dos EUA, como afirmar que o New Deal salvou a economia americana pós-29, que a administração de Harding (1921-23) foi a mais corrupta, que Nixon abusou dos poderes de presidente mais que seus antecessores, que quem se opunha ao movimento aboliciosta era necessariamente racista e por aí vai. Ao fazer um balanço do governo de W Bush, lembra displicentemente que Bush chegou dizendo que faria um governo "para unir, não para dividir", e agora entrega um país com duas guerras (Iraque e Afeganistão), um déficit monumental (já na casa do trilhão de dólares) e uma economia em frangalhos (a pior crise desde a II Guerra Mundial), como se a crise econômica fosse de responsabilidade dele e como se a decisão de entrar numa guerra não passasse de mero capricho pessoal (se perguntado, Petry provavelmente responderia que sim, que não passa de mero capricho pessoal).

Num quadro com as colunas 'O mundo pensa que... / Mas os Estados Unidos pensam que...', Petry mostra que não deveria se arriscar a falar por uma nação que ele desconhece, ou conhece apenas através do NY Times: ... o eleito merece todo o entusiasmo de que é objeto, como é natural em qualquer eleitorado do mundo. Torcem para que Obama resolva os problemas (no kidding?), mas não há nenhum sinal (nem procissão, nem comoções públicas, nem pedidos de benção) de que o julguem portador de superpoderes... É de surpreender, então, que eleitores conservadores americanos tenham inventado os epítetos the Anointed One, the Chosen One etc. para Obama -- certamente Petry não considera (mas sabe-se lá, né) desprezível a parcela conservadora do eleitorado americano.

É natural ver simplificações numa revista cujos artigos raramente ultrapassam as duas páginas; pode-se sempre falar em didatismo ou algo que o valha. Difícil de entender é que noções tão bobas -- bobas até entre setores da esquerda americana, principalmente agora que já explodiram os primeiros escandândalos da era Obama -- ocupem tanto espaço no semanário mais lido do país. Quando é na Veja o Reinaldo Azevedo não reclama...

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O Papa Bento XVI é um “des-reformador” e como todos os conservadores, ele quer que tudo esteja igual, que não haja marolas, nem discordâncias, nem heresias. E aí comete gafes papais. O trecho é do Arnaldo Jabor. Segundo Jabor, melhor seria se o papa admitisse heresias; só assim pra evitar 'gafes papais'. Um conselheiro assim é exatamente o que o Vaticano precisava.

Interregnum

Gostaria de poder dizer que tenho um motivo nobre pra estar escrevendo pouco -- emprego novo, fundação de uma ONG pela defesa das criancinhas da Palestina ou organização de uma conferência sobre empreendedorismo social --, mas a verdade é que, sem móveis, fica desconfortável digitar por muito tempo. O pior disso tudo é que me surgem idéias geniais, originalíssimas, que escapolem convenientemente antes que apareça a disposição pra escrever. Vai então um post sobre o jornalismo brasileiro.

domingo, 25 de janeiro de 2009

Hold me closer, tiny dancer

Sábado passado pude ver Elton John executando ao vivo, aqui em São Paulo, algumas das músicas dele de que mais gosto (destaco Tiny Dancer, Good Bye Yellow Brick Road e Believe). O ponto alto do show -- pra mim e, acredito, pro casal que estava ao meu lado -- foi mesmo Tiny Dancer. Enquanto Elton John cantava o refrão -- hold me closer, tiny dancer... -- o casal obedecia e se abraçava ao som de uma balada que fez sucesso quando eles (e eu) não éramos nem nascidos. A voz, está claro, não é a mesma do começo dos anos 70: as notas mais altas ou desapareceram ou foram interrompidas antes que faltasse o fôlego. O mínimo que se pode dizer, porém, é que a melodia sobreviveu ao teste dos tempos. Veja a versão original da música aqui.

Outra grande satisfação foi não ter de ser empurrado de 5 em 5 segundos, apesar de estar razoavelmente perto do palco. Roqueiros mundo afora: aprendam com o exemplo de seus pais!

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

RIP, Neuhaus


I weep, rather, for all the rest of us. As a priest, as a writer, as a public leader in so many struggles, and as a friend, no one can take his place. The fabric of life has been torn by his death, and it will not be repaired, for those of us who knew him, until that time when everything is mended and all our tears are wiped away. -- Joseph Bottum

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Smoking is the new gay

Depois que li esse post fiquei com vontade de dizer que smoking is the new gay. É divertido acompanhar a postura das pessoas diante de características marginais, como fumar, ser conservador, ser judeu etc. Vivemos um momento auspicioso nesse sentido: para quem nasceu no intervalo que vai do final da 2a. grande guerra até meados dos anos oitenta, anti-semitismo (deve ter perdido o hífen, mas dane-se) é absurdo inconteste até pra quem se limita a visitar o cinema nas horas vagas. O bombardeio de obras sobre o Holocausto nos ensina a encará-lo como algo inefável, coisa de maluco mesmo. Faça esse experimento: pergunte a um transeunte qualquer sobre a origem do anti-semitismo; se ele for além da ladainha sobre grandes corporações, concentração de dinheiro e financiamento de guerras, dê-se por satisfeito. Não sei se é só nas ocasiões em que a oportunidade tentadora de malhar a política externa americana aparece (na cabeça dessa gente, EUA = Israel) ou se é algo mais geral, mas até essa aversão instintiva ao anti-semitismo parece estar desaparecendo. Isso mesmo: o governo brasileiro já pode equiparar judeus e nazistas e passar incólume, sem que judeus sovinas saiam cobrando dívidas em carne humana por aí.

Segundo nos conta Hannah Arendt, houve um tempo em que não havia nada mais charmoso que ser judeu -- evidentemente, antes de eles serem de fato odiados. Compreende-se bem: é o charme do diferente, da minoria, do excêntrico. O próprio Disraeli, também ele judeu, teria (ainda não tenho opinião formada sobre ele) contribuído com a pantomima. Pois bem: smoking is the new gay, e isso significa despertar um conjunto amplo mas não ilimitado de reações, a depender do momento histórico, assim como acontece com o gay ou com o conservador. O conservador desperta incredulidade no Brasil de hoje; já nas plantations da Virginia do início do séc. 19, era só mais um. O gay nessas mesmas plantations era um pária; hoje é acolhido e festejado em toda parte, assim como o escravo de ontem é hoje recebido no ensino superior a despeito de seu mérito intelectual. Fico me perguntando, assim como Romerito José inquiria Sto. Agostinho, se chegará a época em que fumantes e conservadores (ou judeus, uma vez mais) serão mandados para o forno, isto é, se tudo muda o tempo todo.

Se não muda, podemos estar certos de que não é graças à constatação, a qual todos os homens chegariam independentemente, de que existem valores atemporais. Alguns poucos chegam a essa constatação e nos fazem o favor, na medida de seus talentos, de incuti-las no imaginário popular. Forçoso é dizer: guiamo-nos por preconceitos bem mais do que estamos dispostos a reconhecer (e vejam que desastre se assim não fosse, se tívessemos de esperar que cada um formasse sua idéia sobre cada bloco civilizacional). Coleridge dizia, e sabemos por experiência, que nem nas classes mais privilegiadas da mais grandiosa civilização seria razoável encontrar mais que alguns poucos dedicados à especulação filosófica. O otimismo dos philosophes parece particularmente ingênuo numa época em que até aritmética básica aterroriza muitos ditos letrados. Os raros momentos em que o homem consegue erguer-se um pouco pra observar sua condição miserável certamente não são obra da tão alardeada Razão. No dizer de Disraeli (de novo ele), It was not Reason that besieged Troy; it was not Reason that sent forth the Saracen from the Desert to conquer the world; that inspired the Crusades; that instituted the Monastic orders; it was not Reason that produced the Jesuits.

O triunfo da imaginação sobre a razão fica evidente se repassamos as idéias que ressoam com mais intensidade entre as intelligentsias: a visão apocalíptica de Marx, os sonhos de Freud, o caos de Derrida. Todas elas têm um quê de inebriante e difuso e, apesar de procurarem se apresentar como flores da racionalidade, são só isso: visões. Visões que dependem de uma imaginação muito poderosa pra fazê-las sobreviver a despeito da e muitas vezes em oposição à racionalidade que dizem representar. Mais que pesquisas científicas desacreditando os males que o fumo causa à saúde, a turma dos fumantes precisa de alguém que nos lembre por que houve um tempo em que era fashionable fumar.

domingo, 28 de dezembro de 2008

Por um Natal sem direitos

Natal e os chamados direitos humanos aparecem com frequência na mesma frase: todos têm direito a um Natal feliz, sem fome, sem frio etc. Fiquei pensando: por quanto tempo a humanidade pôde passar o Natal sem ouvir falar em direitos humanos? A Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU, é de 1948. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, dos facinorosos franceses, é de 1789. A Declaração de Independência dos EUA é de 1776 e a Carta de Direitos inglesa é de 1689. Acho que não seria exagero concluir, então, que por pelo menos 1500 anos (dC) a idéia de que o ser humano já nasce com direito a isso ou àquilo soaria estranha aos ouvidos mais benevolentes. E, nada obstante, foi nesse período que inventaram o hospital e a universidade pública.

Acho que poucas coisas comprometem mais a felicidade que o pretenso direito à felicidade. Se me aparecem com um papel garantindo o meu direito à felicidade irrestrita, qualquer existência aquém de um paraíso na Terra vai me parecer uma tremenda usurpação. Os americanos foram mais modestos (e mais felizes) ao garantir apenas o direito à procura da felicidade, que aliás pode ser tão medonha quanto se queira.

A mania de garantir direitos a torto e a direito cairia por terra se se dessem ao trabalho de analisar o problema pelo outro lado, o dos deveres. Se eu tenho direito à felicidade, alguem tem o dever de concretizá-la e, fora o meu anjo da guarda, nunca ouvi falar de semelhante cargo. Pior que a impraticabilidade da idéia são as doses cavalares de ressentimento que ela inspira, o ressentimento que Nietzsche quis imputar justamente àqueles que se opunham a ela, os que inventaram a caridade não por dever (no sentido legal), mas por princípio.

Desejo um bom Natal a todos: não que vocês tenham direito a um bom Natal, mas porque desejo que assim seja.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Ainda o Cristaldo ou A compartimentalização da inteligência

O Janer Cristaldo chega a níveis de idiotia que eu mesmo julgava improváveis. Ele se refere ao Reinaldo Azevedo como 'recórter tucanopapista hidrófobo' desde a polêmica da tradução do texto papal sobre a condição do divorciado dentro da Igreja Católica. A birra dessa vez (procure os textos no blog, aqui) é com um texto que Azevedo escreveu, para a última Veja, 'tecendo loas ao stalinista' Graciliano Ramos.

Confundir vida e obra de um autor é suficientemente constrangedor até pra quem não se diz jornalista. Cristaldo não é burro a esse ponto, e quem já leu dois ou três de seus textos (os que não tratam de religião!) sabe disso. Mas, alas, quando ele deixa de tratar de política e passa a tratar de religião, é como se Pelé deixasse de jogar pra comentar futebol, ou como se Stephen Hawking deixasse a física de lado pra bater uma bola (não que Cristaldo seja tão bom cronista político assim; o que vale é o contraste). Até aí nada de muito estranho; poderíamos supor bloqueio mental ou algo do tipo. O problema é que, quando se trata de religião, o bloqueio mental é generalizado.

Mas e daí?, esses últimos posts são sobre Graciliano Ramos, não sobre religião. Ocorre que o Cristaldo não consegue mais deixar o Azevedo em paz depois que o Azevedo defendeu o papa. Reitero: não fosse o fatídico episódio papal, Cristaldo continuaria mantendo o silêncio de sempre em relação ao colunista de Veja.

A compartimentalização da inteligência (alguém já deve ter inventado um termo melhor pra isso) é a capacidade que alguns têm de alocar zero de inteligência pra algumas áreas do conhecimento. Especialização não é bem sinônimo porque o especialista não precisar ignorar o complementar de sua especialização. Também não se trata de inépcia congênita: ninguém ficaria irritado com um sujeito que nasceu com péssimo senso de orientação, péssima visão espacial ou dificuldade pra decorar regras de ortografia; lida-se com essas dificuldades desapaixonadamente, como quem fecha um buraco num muro ou uma cárie num dente.

Por outro lado, que fazer de alguém que discorre razoavelmente sobre história e/ou política e/ou economia e/ou filosofia e desata a repetir asneiras quando o assunto é religião? Não são áreas tão desconexas assim; o bloqueio mental é antes psicológico que congênito. Pode ser também um preconceito elevado a teoria, um grão de ignorância que se aloja desgraçadamente no cérebro do indivíduo e que é pouco a pouco recoberto por camadas de desinformação, obtusidade e arrogância até se tornar um tumor purulento e malcheiroso. A imagem é nojenta: a realidade retratada também.