quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Estilo

Fico imaginando sobre o que eu escreveria caso tivesse de escrever toda semana, ou todo dia (provavelmente já fiz isso por alguns curtos períodos, mas nunca por obrigação). As alternativas mais batidas não são muito atraentes. São elas, que eu saiba: repisar piadas/tiradas que sabidamente funcionaram um dia, invertendo essa ou aquela circunstância; comentar notícias de jornal, com o cuidado de mostrar que cada notícia é evidência adicional de uma tese maior sua enunciada desde há muito; comentar notícias de jornal. O problema das notícias de jornal é que em geral tratam de gente desinteressante e, pior, gente viva (ou recém-matada).

É preciso muito talento pra falar com interesse do que se pode ver aqui e agora. Uma ilha que eu possa ver e visitar pode até ser bem bonita, mas provavelmente não voa ou é povoada por cavalos inteligentes como nos contos de Gulliver. Já vi tempestades fortes, mas nunca uma com efeitos magnetotemporais como no conto de Edgar Poe. A mania moderna de devassar tudo até os mínimos detalhes, discriminando e contabilizando tudo, parece tornar o ofício de escrever mais difícil. Ainda bem que não vivo disso.

Se eu vivesse disso, e considerando que não tenho talento para discorrer agradavelmente sobre coisas banais (quem não se lembra das escarradeiras floridas de Nelson Rodrigues?), recorreria àquelas pequenas excentricidades que ainda dão laivos de pessoalidade ao texto; algo que eu pudesse sacar da algibeira assim que me faltasse assunto melhor. Poderia ser um terceiro mamilo, um parente filiado ao PC do B ou o hábito de usar tênis all-star. Nenhum defeito é tão constrangedor quando você é o primeiro a confessá-lo.

Não é nem necessário que seja defeito; pode ser também uma virtude inútil, um conhecimento desnecessário. Há quem estude vinhos, quem aprenda a fazer sushi. Eu resolvi estudar ciências exatas. Está claro que as ciências exatas estão longe de ser inúteis (o mundo seria bem menos miserável se todos dominassem as quatro operações), mas são para mim, pelo menos tudo aquilo que me chegou depois do primeiro semestre da faculdade. Resolvi estudar o assunto como quem aprende a fazer sushi. Deu certo: acabei gostando.

Agora, alem de saber um pouco sobre a radiação Hawking e entender a demonstração que o vigésimo presidente dos Estados Unidos, James Garfield, propôs para o teorema de Pitágoras, posso rir da cara dos embusteiros. Rir de embusteiros, e denunciá-los devidamente, parece ser um dos maiores bônus de aprofundar-se em qualquer área do conhecimento. Projeções econômicas que precisam ser adaptadas diariamente e que desprezam solenemente variáveis importantes são motivo de risada pra quem estudou cálculo. Simulações da atmosfera que desprezam o efeito das nuvens pra 'provar' o aquecimento global são motivo de risada pra quem estudou transferência de calor.

Eis aí: já que não podemos mais rir de bruxas e gnomos, riamos de nós mesmos.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Ó, Khronos; Ó, Paciência!

Uma pessoa (a menos que pobre) que não tem tempo pra fazer o que gosta é muito provavelmente idiota; uma pessoa que faz questão de dizer que não tem tempo pra fazer o que gosta é certamente idiota.

Se você franze o sobrolho quando um idiota diz, na sua frente, que não tem tempo pra fazer o que gosta, ele diz que na realidade (ou seja, antes estávamos no mundo dos sonhos, não na realidade) tem tempo de sobra pra fazer o que gosta porque gosta de tudo que faz. A intenção parece ser poder atirar pra todos os lados: aos que se querem mui importantes por estarem sempre ocupados, os idiotas se dizem também ocupados, sem tempo pra respirar e cansadíssimos; aos que preferem aproveitar a vida, os idiotas se dizem satisfeitos por passar todo o tempo fazendo algo que há minutos era estafante e insuportável.

Esses acessos de hiperatividade surgem, creio eu, de uma espécie de megalomania: a idéia de que estamos sempre a um passo de mudar o mundo. 'Mudar o mundo', 'fazer a diferença' etc. é uma questão de vontade, não de capacidade. Quando a turma do 'fazer a diferença' se reúne (e eles adoram se reunir), é para candidamente nos informar sobre a importância do tempo, sobre como 'otimizar' esforços, eliminar desperdícios, 'enxugar' a rotina etc., tudo, é claro, com aquele jargão corporativo-newage-bacaninha.

Tudo isso é muito curioso, principalmente porque não há lugar em que se perca mais tempo que nessas reuniões. Minha curiosidade mórbida me levou a verificar pessoalmente essa impressão que carrego desde o berço, quando começava a berrar e apertar veementemente um chocalho quando via um ongueiro distribuindo panfletos na praia. Visitem a página do Reunes (aqui) e vejam por quê. Observem a terminologia: 'empreendedorismo social', 'intercâmbio de idéias', 'poder transformador do jovem' e por aí vai. Dos palestrantes, nenhum seria capaz de definir esses termos sem se valer de outros mais abstratos ainda. Acho que um dos critérios mais seguros pra constatar o esvaziamento de uma idéia é constatar o esvaziamento da terminologia com que ela é expressa. Esses termos podem até ter tido significado palpável algum dia, mas hoje se reduziram a slogans polarizadores.

Reproduzo aqui o profile de um dos palestrantes, Edgard Gouveia Júnior:
[É] arquiteto e urbanista, graduado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de Santos, SP, Brasil, 1993; pesquisador do Instituto TIBÁ – Tecnologia Intuitiva (?) e Bio-arquitetura (??), 1993-1996; pós-graduado em Jogos Cooperativos (???), Universidade Monte Serrat, 2003; professor da pós-graduação da Universidade Monte Serrat, 2004-2007 no curso Desenvolvendo Comumunidades; consultor e palestrante internacional nas áreas de protagonismo juvenil, empoderamento molecular e comunitário (????) e Jogos Cooperativos; facilitador do Projeto Cooperação; Co-fundador e Presidente o Instituto Elos – BR; membro da rede internacional Berkana Exchange, 2006-2007; Fellow Ashoka, 2006.
O leitor mentalmente são começa a se perguntar uma série de perguntas, como por que diabos uma universidade em Santos se chama Monte Serrat, em que consistiria um curso chamado Desenvolvendo Comunidades, desde quando 'protagonismo juvenil' se transformou em área do conhecimento e outras tantas. E quanto à tecnologia intuitiva? O que significa isso? Só é tecnologia intuitiva a tecnologia que os estudantes forem capaz de intuir? E se os estudantes forem todos umas bestas?

Não parece razoável que toda uma geração se deixe levar por uma tergiversação de tão baixa qualidade. Se são esses os luminares que devem nos dizer o que fazer com nosso tempo, estaremos melhor dormindo.

sábado, 1 de novembro de 2008

The Hippopotamus

And when this epistle is read among you, cause that it be read also in the church of the Laodiceans.

The broad-backed hippopotamus
Rests on his belly in the mud;
Although he seems so firm to us
He is merely flesh and blood.

Flesh and blood is weak and frail,
Susceptible to nervous shock;
While the True Church can never fail
For it is based upon a rock.

The hippo's feeble steps may err
In compassing material ends,
While the True Church need never stir
To gather in its dividends.

The 'potamus can never reach
The mango on the mango-tree;
But fruits of pomegranate and peach
Refresh the Church from over sea.

At mating time the hippo's voice
Betrays inflexions hoarse and odd,
But every week we hear rejoice
The Church, at being one with God.

The hippopotamus's day
Is passed in sleep; at night he hunts;
God works in a mysterious way --
The Church can sleep and feed at once.

I saw the 'potamus take wing
Ascending from the damp savannas,
And quiring angels round him sing
The praise of God, in loud hosannas.

Blood of the Lamb shall wash him clean
And him shall heavenly arms enfold,
Among the saints he shall be seen
Performing on a harp of gold.

He shall be washed as white as snow,
By all the martyr'd virgins kist,
While the Truch Church remains below
Wrapt in the old miasmal mist.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Paranoia Darwiniensis

Há alguns assuntos que são verdadeiros destruidores de reputações: penso principalmente em aquecimento global e darwinismo. A essa altura, dos textos escritos sobre esses assuntos, 90% são bobagens e 9,9% obviedades. Só de vislumbrar os termos num artigo já tenho vontade de bocejar (se você descobriu uma espécie de formiga africana que confirma espetacularmente a teoria darwiniana, ótimo; se descobriu outra que a refuta com espetáculo comparável, ótimo também). Foi assim que me arrastei pelas páginas do excelente Darwinian Fairytales -- Selfish Genes, Errors of Heredity, and Other Fables of Evolution, do filósofo australiano David Stove. Em vários momentos o livro se aproxima perigosamente (e Stove é o primeiro a reconhecê-lo) dos 9,9% mencionados acima. A verdade é que, não fosse a condição patológica referida no título desse post, livros como o de Stove não precisariam ser escritos.

Mas isso é dizer pouco: não fossem os cacoetes mentais X e Y, os livros A, B, C etc. também não precisariam ter sido escritos. O fato, por mais melancólico que seja reconhecê-lo, é que os cacoetes existem e prosperam num ritmo nada menos que estupefaciente. Não vou nem comentar os mais famosos (e antigos), cuja origem remonta ao próprio Darwin (ou, antes dele, Malthus), como a idéia de que uma população cresce indefinidamente se não lhe são impostas restrições de alimentação, ou aquela outra, mais absurda ainda, segundo a qual qualquer traço que não contribui para a propagação da espécie será dizimado cedo ou tarde. Não se pode argumentar 'contra' isso, pode-se apenas observar que a realidade, a humana pelo menos, nem se aproxima do modelo proposto. Essas idéias são tão ridículas que se você resolver apresentá-las a algum darwinista (isto é, alguém que se julga darwinista), a resposta mais provável será 'ah, Darwin não acreditava nisso realmente', ou 'ah, ninguém realmente acredita nisso', o que nos obriga a colher citações do tipo Every single (!) organic being around us may be said to be striving to the utmost to increase in numbers ou [W]e may feel sure that any (!) variation in the least degree (!) injurious would be rigidly destroyed, ambas do A Origem das Espécies. Deixei o erro mais grotesco para o final: segundo Darwin, a seleção natural e a luta pela sobrevivência são de tal maneira furiosas que of the many individuals of any species (!) which are periodically born, but a small number can survive (também do Origem). Darwin teria mudado de idéia se tivesse visitado a maternidade do hospital mais próximo.

Nosso puppet-darwinista, perturbado com a evidência textual, passaria então para a próxima resposta-padrão, que consiste em dizer que Darwin acertou no geral e errou nos detalhes, e que os darwinistas atuais corrigiram oportunamente os deslizes do barbudo. Não só isso não é verdade como é o oposto da verdade: neodarwinistas, sociobiólogos etc. não se contentam com ratificar a ortodoxia darwiniana; insistem em extrapolá-la. As diferenças estão basicamente no nível de detalhamento: com as contribuições mendelianas à genética foi possível colocar os genes na jogada. Se antes era a sobrevivência e a reprodução da espécie, ou de um indivíduo da espécie, que guiavam a seleção natural, agora é a sobrevivência e a 'reprodução' dos genes que levam a responsabilidade. Nasce aí o gene egoísta de Richard Dawkins (que na realidade, segundo nos informa Stove, é idéia original de G. C. Williams).

Emprestei o livro para um colega no intervalo da aula e, lidas 25 páginas, o sujeito me volta com um 'o autor é ignorante demais', ignorante na acepção de brutal. Realmente Stove é implacável, e parece ter um prazer especial em espedaçar as teorias de Dawkins. Quem quer que leia um esboço da teoria do gene egoísta reconhece de imediato que se trata de um símile, que Dawkins não poderia acreditar que um gene possa ser dotado de atributos como inteligência, egoísmo etc. Nosso senso comum funciona perfeitamente aí; de fato, Dawkins afirma expressamente que se trata apenas de uma terminologia mais prática. Mas, a menos que Stove tenha forjado as citações que pinçou do The Selfish Gene, não há como acreditar nisso. Nós nos esforçamos para emprestar alguma sanidade ao Dawkins, mas o danado não colabora. Vejam só o que ele nos diz: [W]e are... robot-vehicles blindly programed to preserve the selfish molecules known as genes; [W]e are manipulated to ensure the survival of [our] genes; [T]he fundamental truth [is] that an organism is a tool of DNA; [L]iving organisms exist for the benefit of DNA. Edward Wilson, que de tanto observar insetos ficou tão maluco quanto Dawkins, afirma que [T]he individual organism is only the vehicle [of genes], part of an elaborate device to preserve and spread them... The organism is only DNA's way of making more DNA.

Pergunta simples: seria possível manipular seres humanos sem ser mais inteligentes que eles? Eu manipulo furadeiras, lápis, latinhas de Coca-Cola etc. e, apesar de minhas evidentes limitações, não hesitaria em dizer que sou mais inteligente que todas essas coisas. Parece claro que, se Wilson e Dawkins estão certos, os genes não só são egoístas (na acepção usual da palavra) como são mais inteligentes que seres humanos! E nós achando que macacos e golfinhos eram os que mais se aproximavam, hem?

Stove declara logo no prefácio que não é religioso (e que não é cristão por considerar o cristianismo incompreensível, o que é apenas parcialmente verdadeiro). Como bom polemista que era, deve ter cansado de debater o assunto com gente até bem mais inteligente que Dawkins; não admira, então, que saiba reconhecer uma natureza religiosa assim que a encontra. O nono capítulo, ou ensaio, de seu livro é chamado A New Religion, a religião de Richard Dawkins e dos sociobiólogos em geral (segundo consta, a teoria do gene egoísta é consenso entre eles). Não é monoteísta porque os genes são muitos, mas ao menos são invisíveis como o Deus cristão. O impulso de resposibilizar uma entidade de inteligência infinitamente superior pelo andamento das coisas terrenas, algo que imaginávamos só ocorrer em algumas religiões, é traço característico também desses novos darwinistas, sociobiólogos ou darwinistas aloprados. O capítulo seria com muita probabilidade o melhor do livro, não fosse o sugestão, ainda que velada, de que a absurdidade desses últimos atesta absurdidade nas religiões de fato. A única desvantagem de uma boa imagem é que ela pode nos levar longe demais.

O livro de Stove não é de filosofia, a despeito da tag Philosophy/Sciense em seu verso. Em vez de falar em precedência ontológica pra rejeitar a idéia de que o gene pode ser mais inteligente que o humano, Stove se limita a uma argumentação que não exige muito da imaginação do mais ávido materialista. Trata-se do já bem familiar exercício de confrontar teoria e realidade física. Menos divertido, mas mais que suficiente.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Ceticismo Juvenil

Somos particularmente burros durante a adolescência porque não chegamos a saber muito sobre coisa alguma, mas já deixamos de não saber nada. Esse pouco de conhecimento é a perdição de muita gente; alguns permanecem adolescentes até morrer. É natural ocorrer de esse pouco de conhecimento incluir o fato de que é possível, com mais ou menos habilidade, mentir, enganar, lubibriar. Trata-se de mecanismo de defesa tão poderoso quanto perigoso: se sabemos pouco sobre algo e não queremos ser enganados, basta duvidar. Nasce assim o ceticismo juvenil, que duvida de tudo menos do ceticismo em si.

Não se costuma tentar justificar filosoficamente o ceticismo; aceitam-no de bom grado porque é cômodo e porque nos livra do estigma de 'crédulo' ou 'ingênuo' (nada mais constrangedor!). O exemplo disso na política brasileira é evidente: 'todo político é ladrão' porque é difícil verificar quem não é ladrão em meio a tantos ladrões. Essa preguiça mental é adulada por gente até inteligente como o Diogo Mainardi, ainda que ele o faça por motivos humorísticos. Só se pode levar a sério um cético que duvida do próprio ceticismo, já que não existe motivo concebível (além da comodidade, claro) para tirá-lo da jogada.

É durante a adolescência que várias verdades carregadas candidamente desde a infância são questionadas pela primeira vez. Isso não seria ruim se não fôssemos tão preguiçosos e não optássemos pela saída mais fácil: duvidar. Não chega a impressionar que quem é ateu decide ser ateu por essa época, mas quem dirá que 16 é a idade ideal pra esse tipo de decisão? 25 também não é, mas aos 25 não se tem a metade da convicção de alguém de 16.

Poderia haver combinação mais burra que preguiça e convicção? Quem levaria a sério alguém que duvida veementemente da natureza ondulatória da luz sem nunca ter estudado eletromagnetismo? Esse princípio de autoridade, tão óbvio quanto saudável, inexiste fora da área de exatas sabe-se lá por quê. Tanto que quem é de exatas (e isso inclui desde a faculdade de engenharia até a Royal Society) se sente perfeitamente capacitado pra debater o sexo dos anjos. Acho que quando Tomás de Aquino disse que há dois caminhos para a verdade, o da razão e o da fé, ele quis dizer que a ignorância pode, sim, ser uma benção (e não num sentido pejorativo): certamente a intuição metafísica de qualquer empregada doméstica é melhor que a do Edward Wilson, ainda que elas não saibam o que é um cromossomo ou intuição metafísica.

Fico imaginando como seria um tempo em que a ciência não fosse a única esperança de credibilidade intelectual. Joãozinho interpelaria uma roda de amigos com a resolução de uma equação diferencial parcial pelo método da separação das variáveis e seria zombado porque, ora vejam, aquilo estava em completo desacordo com as lições dos sábios escolásticos. Ainda que reconhecendo o absurdo, eu poderia chamar o Joãozinho de lado e, dando-lhe um tapinha nas costas, perguntar: 'viu como é bom?'

sábado, 27 de setembro de 2008

A Excelente Sensação de Estar Sem Pressa

Uma das sensações mais prazerosas que o ser humano pode experimentar é a de estar perfeitamente sem pressa. Talvez isso sirva como uma versão urbana/contemporânea do Nirvana budista. Percebi-o ontem no metrô, quando, apesar de não ter hora pra chegar em casa, mal podia esperar para que o rapaz dos avisos (70% dos atrasos são causados por gente obstruindo as portas... será que fizeram um estudo estatístico ou inventaram esse número na cara dura?) calasse a boca, e para que aquela gente toda tomasse seu rumo e me deixasse mais espaço.

Fui expulso do meu nirvana particular de uma hora pra outra: num instante, metrô vazio e em movimento, pensava eu em coisas agradáveis e inofensivas, como o porquê de o gambá ser tão bonitinho em desenhos animados se na vida real ele é um rato gigante e grotesco. Num outro, metrô parado, lotado e calorento, já não conseguia pensar questões fundamentais como a do gambá e só me perguntava se o rapaz dos avisos realmente tinha que falar tão alto. A mudança abrupta me fez perceber o que eu estava perdendo.

Estamos sem pressa quando o mundo parece girar numa órbita particularmente interessante, quando os instantes se sucedem uns aos outros com um ar donairoso e quase sonolento, dizendo 'olá, com licença', sem atraso ou antecipação. Não queremos que o dia ou o mês acabe, não queremos mudar de emprego ou de namorada, não queremos que a fila ande mais rápido ou que a garçonete acerte seu pedido pela primeira vez na vida. Queremos apenas olhar em redor e poder pensar: assim está bem.

domingo, 14 de setembro de 2008

Os Prazeres e os Dias

Marcel Proust tem um livrinho de textos aleatórios chamado Os Prazeres e os Dias. Li há algumas anos e não gostei muito, mas há nele declarações que acabaram por tornar-se celébres, como a de que a conversa é o passatempo do homem sem imaginação. Num outro texto ele declara que não entende a necessidade de viagens; pode imaginar e apreciar qualquer paisagem de dentro do seu quarto, imaginando-a. Os que não têm uma imaginação tão privilegiada, como eu e você, viajam e apreciam tudo em primeira mão. Mas é verdade que nós ao menos tentamos imaginar como a viagem vai ser; aliás, é bem provável que a tentiva dê a idéia da viagem. Quem está certo sobre o Rio de Janeiro: Nelson Rodrigues, Tom Jobim, ou o carioca mala que mora ao lado? etc.

Percebi com muito atraso que já não se viaja mais assim, ou pelo menos que não é o usual entre gente da minha idade. Hoje a idéia é visitar o leste europeu, o sudeste asiático e alguma ilha obscura e ver no que dá. Já pensou em visitar o Marrocos sem nem saber qual é a capital de lá? Pois é, nem eu. Mas é preciso, dizem, ter esse conhecimento de 'mundo', que de tão vago não poderia mesmo ter outro nome. É mais importante saber que rio corta os montes trans'Alpinos nas coordenadas 51.66, 0.05 (porque esse rio pertence a um país onde as baladas bombam mesmo, cara) a saber por que rota Vasco da Gama alcançou as Índias ou por onde chegou a ajuda francesa na guerra civil americana.

Suspeito que todo esse esforço, que praticamente equivale à criação de uma nova disciplina (chamemo-la de geografia adolescente, ou geografia mochileira), tem como objetivo final um pouco de orgulho próprio, principalmente se envolve a tradicional alfinetada nos americanos. A primeira das duas únicas pretensões intelectuais que o mochileiro tem é provar que o americano não sabe geografia; a segunda é mostrar que a sabedoria aumenta com a distância. São os dois únicos momentos em que, contrariando a própria natureza, o mochileiro exige certa seriedade dos ouvintes.

A segunda é mais interessante e merece um comentário: a distância, seja espacial ou temporal, exerce mesmo certo fascínio. Só que o fascínio advém do desconhecido, e o mochileiro procura o contrário disso. Ele viaja o mundo de ponta a ponta à procura de alguém que seja inteligente o suficiente para entendê-lo, isto é, alguém que seja exatamente como ele. Subvertendo a lógica da aventura clássica, o mochileiro sai bravamente à procura do que é perfeitamente conhecido. Proust estaria certo se estivesse se referindo a isso.