segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Imaginação Moral

- Você, no lugar do Lord Jim, também teria pulado?

Quem foi Lord Jim? Por praticidade, transcrevo o primeiro parágrafo do ensaio The Moral Sense in Joseph's Conrad Lord Jim do George A. Panichas, da Universidade de Maryland (leia a íntegra aqui):
Lord Jim (1900), Joseph Conrad’s fourth novel, is the story of a ship which collides with "a floating derelict" and will doubtlessly "go down at any moment" during a "silent black squall." The ship, old and rust-eaten, known as the Patna, is voyaging across the Indian Ocean to the Red Sea. Aboard are eight-hundred Muslim pilgrims who are being transported to a "holy place, the promise of salvation, the reward of eternal life." Terror possesses the captain and several of his officers, who jump from the pilgrim-ship and thus wantonly abandon the sleeping passengers who are unaware of their peril. For the crew members in the safety of their life-boat, dishonor is better than death.
Se com 'você' eu estiver me referindo a uma amostra aleatória da população, é bem provável que a resposta à pergunta seja não só afirmativa, mas também obviamente afirmativa. Já se comentou o quanto a consternação de Lord Jim (consternação que começa no life-boat mesmo, ao contemplar o aspecto odiento de seus cúmplices) parece hoje exagerada ou até afetada. Se não havia alternativa que não envolvesse risco de vida, por que tanta autoflagelação?

Já Jim pensava diferente; nas palavras do próprio Conrad, he was one of us. Parece que desde muito cedo percebeu que, aonde quer que fosse, a sombra do passado o alcançaria e renovaria as angústias do famigerado pulo, numa espécie de mito do eterno retorno. A imaginação moral não dá espaço para o esquecimento, e de que adianta tanta imaginação moral uma vez que a patifaria já foi feita? Jim reconhece que o máximo que pode esperar é uma redenção parcial, a redenção de quem já se sabe perdido.

Falando em imaginação moral, pensa-se logo em Conrad porque muito de seus personagens parecem forjados com isso em mente. Ao explicar a gênese de Nostromo, seu romance de 1904, lembra que só lhe ocorreu contar a história do roubo de um carregamento de prata numa pequena república na América do Sul (cujos rumores ouviu pela primeira vez quando era ainda um jovem marinheiro) quando pensou em fazer do larápio um sujeito de bom caráter - a perfectly nice fellow. Nostromo em realidade é bem mais que isso; é respeitado e admirado em toda a republiqueta fictícia de Costaguana por sua bravura e lealdade. Reputação somente pode não parecer suficiente; a constância do caráter de Nostromo é-nos assegurada diretamente: He is a man with the weight of countless generations behind him and no parentage to boast of... Like the People.

Nostromo é então encumbido de salvar um carregamento de prata da sanha dos revolucionários locais. Circunstâncias forçam-no a esconder o tesouro numa ilha próxima até que as coisas voltem ao normal, mas prefere dizer que o carregamento foi perdido no mar para poder posteriormente resgatá-lo - e enriquecer - lentamente. Nostromo tenta em vão expiar parte de sua culpa ao exortar contra os interesses materiais dos donos da mina: os estrangeiros, os ricos, que prosperam às custas da lealdade de seus subordinados. Ora, Nostromo sabe que é tão ou mais culpado que o mais inescrupuloso dos capitalistas; ao seduzir a jovem Giselle, avisa que ela pretende casar-se com um ladrão.

A perspectiva de ter de voltar inúmeras vezes à ilha onde o tesouro se encontra enterrado (para recuperá-lo a pouco e pouco) é também, está claro, angustiante. Nostromo não poderia ele mesmo ser mais explícito: considera-se escravo da prata, escravo da ilha:
A transgression, a crime, entering a man's existence, eats it up like a malignant growth, consumes it like a fever. Nostromo had lost his peace; the genuineness of all his qualities was destroyed. He felt it himself, and often cursed the silver of San Tomé. His courage, his magnificence, his leisure, his work, everything was as before, only everything was a sham. But the treasure was real. He clung to it with a more tenacious, mental grip. But he hated the feel of the ingots. Sometimes, after putting away a couple of them in his cabin -- the fruit of a secret night expedition to the Great Isabel -- he would look fixedly at his fingers, as if surprised they had left no stain on his skin.
Já pouco antes de expirar tenta se livrar do segredo que lhe pesa tanto. A prata é incorruptível, assim como a imaginação que lhe nega um sono (eterno ou não) tranquilo: But there is something accursed in wealth. Señora, shall I tell you where the treasure is? To you alone... Shining! Incorruptible!

terça-feira, 1 de janeiro de 2008

Imaginação Social

Em épocas como essa, quando os feriados nos forçam a interagir socialmente não só com os usuais desconhecidos, mas também com conhecidos e familiares que, se dependesse de nós, seriam também desconhecidos, vale mais do que nunca a observação de Adam Smith, no Theory of Moral Sentiments: a identificação moral, ou social, exige um esforço de nossa sympathetic mind. Se não nos identificamos ou nem sequer compreendemos a desgraça alheia, como poderemos lamentá-la? Se você não consegue imaginar o efeito provável de uma observação, de uma piada ou de um gesto, você é socialmente burro ou sem imaginação social.

O curioso é que eu mesmo sempre fui acusado de socialmente incapacitado, acusação que, claro está, significa tão somente que eu não faço amizades no elevador. Aliás, sou levado a crer que os mais extrovertidos são os que menos têm imaginação social: as besteiras que dizem e fazem são relevadas justamente por serem extrovertidas e simpáticas. A imunidade social leva-os à preguiça mental. Trata-se de mais um caso em que a inobservância das regras nos leva à convicção de que as regras não existem.

Pois bem, que bom seria se todos tentassem imaginar a reação do interlocutor antes de dizer algo! Não há nada aqui de autocensura (se houvesse eu seria o primeiro a repudiar a idéia): opiniões razoáveis expressas civilizadamente nunca podem ser ofensivas (exemplo de opinião razoável expressa civilizadamente: parada gay é idiotice), a não ser que haja incompressão por parte de quem está ouvindo. Mas aí o problema já não é nosso. Vejam que o esforço imaginativo de que falo é bem menor do que parece: Isaiah Berlin parece sempre meio desesperado com a perspectiva de transportar-se à realidade de homens de culturas diferentes para melhor compreendê-los. Há razão para desespero; quantos de nós seria capaz de imaginar com exatidão a reação de um egípcio antigo ao sentarmos na tumba de seu avô? Ou a reação de um samurai se mostrássemos o dedo para sua mãe? Mas o que se exige aqui não é nada disso; muito pelo contrário, falamos dos brasileiros, uma gente que chega a ser tediosamente uniforme e previsível.

Exemplos de falta de imaginação social? Convidar alguém para um churrasquinho e pedir que o sujeito leve a carne (acreditem, isso aconteceu comigo recentemente); comentários, ainda que cautelosos, sobre episódios potencialmente desagradáveis na vida de uma pessoa, a menos, é claro, que a ocasião exija; demonstrações extremadas de autocomiseração, principalmente quando não temos como nos identificar com o motivo; etc.

Nesse último caso, não temos o que imaginar, a não ser como seria bom estar longe dali.

terça-feira, 25 de dezembro de 2007

The Oxen

Christmas Eve, and twelve of the clock.
"Now they are all on their knees,"
An elder said as we sat in a flock
By the embers in hearthside ease.

We pictured the meek mild creatures where
They dwelt in their strawy pen,
Nor did it occur to one of us there
To doubt they were kneeling then.

So fair a fancy few would weave
In these years! Yet, I feel,
If someone said on Christmas Eve,
"Come; see the oxen kneel,

"In the lonely barton by yonder coomb
Our childhood used to know,"
I should go with him in the gloom,
Hoping it might be so

Thomas Hardy (1840-1928)

Mensagem de Natal

O Jesus Cristo histórico, que completa hoje 2007 anos, deve, idealmente, ceder um pouco de espaço ao Jesus Cristo que nasce, mais uma vez, hoje mesmo (natal, do latim natális, que significa nascer, ser posto no mundo). O fato de o tempo 'divino' poder, sem perda de coerência, retroceder séculos e séculos a cada ano deveria incitar o homem a, também ele, voltar no tempo e tentar entender o que significava então (e o que significa hoje) a novidade cristã. Bem entendido, a tarefa de hoje é bem mais fácil: não precisamos mais superar o choque da novidade. Muito pelo contrário, o que era radicalmente novo é hoje lugar-comum, a ponto de ser muito indevidamente confundido com o que há de mais trivial em nossas vidas.

Pelo menos essa dificuldade, então, é nova: os incrédulos se convertem (ou melhor, já nascem convertidos) sem reconhecer a própria conversão. Um povo de memória curta deve necessariamente ser ingrato. Se é mesmo verdade que, como dizia Nietzsche, esse perfeito anticristão, o homem superior é aquele de mais longa memória, devemos resgatar a noção socrática de anamnese: lembrar para conhecer. Lembrar, claro está, o que houve nessa e em outras vidas. Feliz Natal.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

O Homem Cordial

Hoje acordei meio aflito, achando que crescia em mim uma idéia originalíssima e genial quando percebi que, como sempre, não passava de uma reedição de algo que eu já tinha lido. A idéia do homem cordial já é hoje bem difundida, ainda que, graças em boa medida à confusão de Cassiano Ricardo, em sua forma corrompida. Nunca ouvi falar de outra expressão mais escandalosamente deturpada que o 'homem cordial' de Sérgio Buarque de Holanda. Talvez fosse possível encontrar rivais em tipos como 'seleção natural', 'materialismo dialético' etc., mas é natural que se escreva muita besteira sobre termos tão comentados. Já o homem cordial do Sérgio Buarque só aparece aqui e ali (até porque qualquer ciência social brasileira anterior a Florestan Fernandes é matéria para arqueólogos), invariavelmente em sua forma positiva: uma variação do velha obsessão brasileira pelo ideal do povo simpático e hospitaleiro; enfim, cordial.

A leitura do Raízes do Brasil já é suficiente pra deixar claro que não se trata disso (pelo menos não principalmente). Respondendo ao comentário de Cassiano Ricardo, Sérgio Buarque se vale da etimologia da palavra pra esclarecer o sentido que ele desejava alcançar: cordial, relativo ao coração. O brasileiro, segundo Sergio Buarque, quer que seu parceiro de negócios, seu patrão, seu cliente, seu funcionário etc. seja, antes de mais, seu amigo. Conta-se uma piadinha, convida-se o sujeito à mesa pra tomar umas, pra jogar futebol, pra conversar na praia. A confraternização sem motivo e descompromissada é o fenômeno brasileiro por excelência; é a expiação do pecado da discordância e da diferença. Joãozinho é adepto do canibalismo? Está tudo muito bem, tudo faz sentido se encarado sob determinado ponto de vista. Pedrinho vê o terrorismo como alternativa? Certamente devemos respeitar sua opinião.

Não admira, então, que nada seja tão raro hoje quanto um ponto de vista expresso com convicção, a não ser que seja o ponto de vista de que não é possível haver convicção. Tudo é mais ou menos aceitável, tudo tem direito a um lugarzinho na vala comum do discutível (há exceções, é claro: hábitos verdadeiramente genocidas como fumar). A verdade é que o brasileiro tem horror a se indispor com quem quer que seja. E, quando não há como evitar indisposições, tem de fazê-lo cordialmente, isto é, violentamente. Isso se verifica com facilidade em qualquer grande aglomerado de pessoas: se você trombar com alguém, a reação, caso haja alguma, é uma de duas: sorriso amigável ou soco no nariz.

Esse salto quântico do amor ao ódio também é observável mesmo em amizades de longa data. O padrão é evitar discussões, mas, caso elas surjam, parece difícil manter o tom civilizado por muito tempo. Que seria isso senão falta de prática? O hábito de discutir calmamente sem que seja necessário arbitrar um 'vencedor' ou mesmo uma conclusão satisfatória (que segundo alguns antigos seria a melhor maneira de obter qualquer conhecimento) é alheio ao temperamento brasileiro. Para evitar discussões, não vou nem sugerir que isso seja particularmente verdadeiro entre as mulheres.

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

O Cronista Revira o Lixo (2)

Ainda no Fantástico de domingo passado eu vi uma entrevista com Oscar Niemeyer. Segundo consta, vai completar 100 anos de idade qualquer dia desses. Como filho de arquiteto, tive a felicidade de ouvir impropérios sobre Niemeyer desde que me entendo por gente: velho maluco, comuna safado, metido a artista etc. Todo cronista, articulista e homem público tem, diria eu, a obrigação de falar mal de Niemeyer. No mundo do politicamente correto, parece que eleger figuras emblemáticas pra servir de saco de pancadas já perdeu toda sua graça. Mas boa parte do charme da crônica advém justamente daí; aliás, aqueles que ainda não sucumbiram ao impessoalismo bonachão de hoje em dia já podem exigir que seus livros sejam expostos numa estante 'crônica heróica', a ser urgentemente implementada em todas as livrarias.

Quem diria que logo eu teria motivos especiais para depreciar a figura de Niemeyer? Pois sim: o alojamento da universidade em que estudo foi projetado pelo próprio, nos idos da década de 50. Há alguns outros prédios por lá projetados por ele, mas deles eu não poderia comentar mais que a aparência externa, a parte 'artística' da coisa. Dessa parte gosta-se ou não a critério, mas tenho a ligeira impressão de que Niemeyer não daria tanta vazão aos seus arroubos arquitetônicos caso tivesse de calcular as estruturas resultantes. Ninguém precisa saber o que são diagramas de momento fletor ou módulo de elasticidade de um material pra perceber que quando apoiamos uma estrutura enorme numa coluna fininha haverá dificuldades de cálculo. 'Mas é pra isso que existem os engenheiros', responderá Niemeyer ou um oponente imaginário qualquer, provavelmente formado em arquitetura. Idealmente, o engenheiro também existiria pra rejeitar projetos que abundam em gastos supérfluos.

Até aí tudo bem: há sempre quem consiga justificar (e pagar por) excentricidades pós-modernas. Problema mesmo surge quando o conforto do lugar fica comprometido. É o que acontece no alojamento onde moro. Mostra-se abaixo uma vista lateral do corredor de apartamentos num bloco qualquer. O sujeito que quiser sair pelos fundos pra visitar outro apartamento vai ter de (i) tomar chuva ou (ii) bater a cabeça num suporte que por algum motivo misterioso faz 45 graus com o teto.

O entrevistador do Fantástico perguntou a quem Niemeyer, aos 100 anos, pediria perdão. Respondeu que pediria a si mesmo, por ter vivido uma vida de muitos enganos. Devia pedir aos estudantes que até hoje batem a cabeça no concreto em sua memória.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

O Cronista Revira o Lixo (1)

Dessas frasezinhas de efeito que aprendemos em manuais juvenis de esperteza (leia-se: cronistas populares, professores espertalhões, familiares metidos a sábios etc.), a que parece ter maior longevidade é aquela que diz que é necessário um gênio para enxergar o óbvio. Não faço a mínima idéia de quem disse ou sugeriu isso pela primeira vez, mas a versão moderna de que mais gosto, como já devem ter percebido, é a do óbvio ululante de Nelson Rodrigues. Às vezes me pergunto: o que teria sido de Nelson Rodrigues sem a insurgência dos idiotas que ele mesmo tanto denunciou? O grande mérito de Nelson Rodrigues foi não ter sido um idiota.

Voltando à minha frase predileta: ouvi-a pela primeira vez de um professor de física, no ensino médio. A aula era sobre convecção térmica: fluido quente, mais leve, subindo; fluido frio, mais pesado, descendo. Óbvio, não? Mas e a formulação matemática disso? Não se estuda isso no ensino médio, mas parece evidente que quanto mais frio for o fluido frio e mais quente for o fluido quente maior será o fluxo de calor resultante. Todos nós sabemos que o ser humano atinge o ápice da burrice ali pelos 15, 16 anos de idade, mas mesmo nós, alunos, então com 15 ou 16 anos, concordamos quase unanimemente que a colocação era de fato evidente. Evidente porque, enfim, já havia sido enunciada muitos anos antes por ninguém menos que Isaac Newton, nessa que ficou conhecida como a lei da convecção de Newton (pois é, ele não gostava só de mecânica).

Lembrei tudo isso porque resolvi ligar a TV ontem enquanto jantava. No Fantástico, entrevistavam um casal cujo maior atrativo é ter permanecido junto por trinta e tantos anos. Não vou nem discutir o fato, grávido de significância antropológica, de um casamento que deu certo já gerar tanto espanto nos dias que correm. Importa notar é que, como eu temia, o entrevistador levantou a bola e o casal começou a falar de sua vida sexual. É ativa, claro, saudável, sim, divertida etc. O óbvio ululante nessa circunstância em particular é o seguinte: enquanto casais jovens devem se esforçar para não fazer sexo em público, o casal ancião deve se esforçar para que o público não perceba que eles ainda fazem sexo. Por mais que pareça injusta, é a lei da degenerescência física, enunciada há muitos e muitos anos por, sei lá eu, Deus.

Nessas ocasiões temos um surto de autoritarismo e nos perguntamos, em companhia do fantasma de Auguste Comte (cito sem aspas porque é de memória): se não permitimos heresias na física ou na matemática, o que nos leva a permiti-las na teoria política? Ou na estética? Passado o impulso comtiano (não é saudável que ele apareça mais de uma vez por dia), só nos resta esperar que esses vovôs passem dos 15, 16 anos o mais depressa possível.