segunda-feira, 9 de julho de 2007

Bizarro Burke

Passados 250 anos, alguma das explicações que o Burke apresenta pra alegações até bem naturais (como a de que a idéia da escuridão está diretamente relacionada ao sublime) rendem uma leitura divertida. Em dado momento, ele tenta atribuir parte do efeito que o escuro pode produzir em nós à dor física:
It may be worth while to examine, (sic) how darkness can operate in such a manner as to cause pain. It is observable, that still as we recede from the light, nature has so contrived it, that the pupil is enlarged by the retiring of the iris, in proportion to our recess. Now instead of declining from it but a little, suppose that we withdraw entirely from the light; it is reasonable to think, that the contraction of the radial fibres of the iris is proportionably greater; and that this part may by great darkness come to be so contracted, as to strain the nerves that compose it beyond their natural tone; and by this means to produce a painful sensation.
Mas meu trecho preferido diz respeito à doçura. Burke parece convencido de que substâncias doces devem sua sensação agradável ao paladar à forma arredondada do retículo cristalino dos grãos de açúcar, que assim poderiam deslizar languidamente sobre as papilas da língua. Vejam:
Suppose that to this water or oil were added a certain quantity of a specific salt, which had a power of putting the nervous papillae of the tongue into a gentle vibratory motion; as suppose sugar dissolved in it. The smoothness of the oil, and the vibratory power of the salt, cause the sense we call sweetness. In all sweet bodies, sugar, or a substance very little different from sugar, is constantly found; every species of salt examined by the microscope has its own distinct, regular, invariable form. That of nitre is a pointed oblong; that of sea salt an exact cube; that of sugar a perfect globe. If you have tried how smooth globular bodies, as the marbles with which boys amuse themselves, have affected the touch when they are rolled backward and forward and over one another, you will easily conceive how sweetness, which consists in a salt of such nature, affects the taste; for a single globe, (though somewhat pleasant to the feeling) yet by the regularity of its form, and the somewhat too sudden deviation of its parts from a right line, it is nothing near so pleasant to the touch as several globes, where the hand gently rises to one and falls to another; and this pleasure is greatly increased if the globes are in motion, and sliding over one another; for this soft variety prevents that weariness, which the uniform disposition of the several globes would otherwise produce.

sábado, 7 de julho de 2007

O Belo e o Sublime

Outro dia reparei em algo que ainda agora considero genial: existe uma tácita superioridade do salgado em relação ao doce. Esse é o tipo da coisa de que poucos, acredito, discordariam, apesar de não se sentir a necessidade de expressá-lo claramente. A vontade de doce pode até ser mais forte e repentina, mas também passa mais rápido e a saciedade a ela relacionada lembra uma espécie de enjôo. A vontade de doce é instável, volúvel, passageira. Não é à toa que representa o maior deleite de muitas moças.

Pois bem, essa 'superioridade' que eu percebi, se aceitamos a distinção proposta por Edmund Burke em seu A Philosophical Enquiry into the Origin of Our Ideas of the Sublime and Beautiful, está relacionada à idéia do sublime, não da beleza. De fato, Burke chega a concluir, depois de muito divagar sobre os pontos de união de nossos sentidos, que a doçura é a beleza do paladar. Da mesma maneira podemos dizer com muita propriedade que um belo pedaço de picanha bovina, e não um brigadeiro, é sublime. É claro que há quem diga que o brigadeiro pode ser sublime, mas isso não passa de uma variante da veadagem contemporânea (convém reparar, aliás, na maneira sub-reptícia com que o vocábulo 'sublime' foi sequestrado por esse pessoal). Sublime, para nós, está associado ao grandioso, ao estupeficante, àquilo capaz de nos deixar num estado de (é esse o termo que Burke usa com mais insistência) astonishment.

Se a intenção é diferençar o belo do sublime, algumas dicotomias se apresentam logo como bastante úteis: o sublime traz a idéia de grandioso (no sentido de dimensões generosas mesmo) assim como a beleza se aproxima mais do pequeno (alguém duvida que um gatinho perderia boa parte de sua beleza se tivesse dois metros de altura?). Se o belo desperta em nós impulsos amorosos, o sublime é muito mais provavelmente capaz de produzir um misto de assombro, medo e até mesmo dor.

Burke se distingue da maioria dos que se dedicaram a esse tópico por atribuir uma importância marginal à razão humana. Considere-se como exemplo o prazer que sentimos ao presenciar qualquer tipo de desastre ou calamidade ou sofrimento. Esse prazer é inegável e existe desde sempre, ou não seríamos capazes de explicar o sucesso de espetáculos de gladiadores, de touradas, das tragédias grega e elizabetana, ou até mesmo de filmes trágicos de recentemente. A primeira resposta que nossa razão procura dar consiste em lembrar que só nos divertimos com o sofrimento que é sabidamente fictício (touradas e gladiadores já contrariam esse argumento). Mas basta lembrar a maneira com que acompanhamos a história para perceber que as coisas não são bem assim: batalhas e morticínios históricos ganham um colorido todo especial exatamente por sabermos que eles de fato ocorreram. O assassínio de Júlio César seria um episódio bem menos interessante caso não passasse de ficção. Até mesmo quando passamos a acontecimentos puramente mitológicos ainda entretemos alguma esperança de realidade, a menos que alguém acredite que seja completamente impossível haver um fundo real para mitos como os de Medéia ou Saturno.

A próxima justificativa é menos edificante e consiste em dizer que nos divertimos porque aquele sofrimento não pode ser nosso. É claro que se minha própria mãe me matasse eu não teria condições de subtrair qualquer tipo de prazer do mito de Medéia (já que eu estaria morto), mas não me parece lícito atribuir essa distância a qualquer impressão que eu tenha do mito em si. Muito pelo contrário, é mais natural supor que a morte perderia gradativamente todo e qualquer interesse (e, como consequência, seu caráter sublime) para mim se minha natureza fosse alheia a ela, isto é, se eu fosse imortal. Para Burke, todas essas construções tardias da razão procuram mascarar um processo que se dá antes que qualquer arrazoado tenha tempo de ser produzido:
Chuse a day to represent the most sublime and affecting tragedy we have; appoint the most favourite actors; spare no cost upon the scenes and decorations; unite the greatest efforts of poetry, painting and music; and when you have collected your audience, just at the moment when their minds are erect with expectation, let it be reported that a state criminal of high rank is on the point of being executed in the adjoining square; in a moment the emptiness of the theatre would demonstrate the comparative weakness of the imitative arts, and proclaim the triumph of the real sympathy.
Parece não lhe ocorrer que esse predomínio das paixões (no caso anterior, o da 'simpatia', esse interesse mórbido que temos pela vida, e morte, de nossos semelhantes) antes de qualquer intervenção da razão torna impossível o projeto a que ele mesmo se propõe, o qual consiste em nada menos que estabelecer, através da razão, um itinerário de nossas paixões. Burke parece se dar conta disso antes mesmo do término de seu inquérito, quando se contenta com apontar de maneira inequívoca as diferenças entre o belo e o sublime, termos que até hoje, e principalmente hoje, costumam ser usados como sinônimos por muitos.

quarta-feira, 4 de julho de 2007

A Boa Nova

Há dois mil anos, o homem tem algo radicalmente novo, que não chega a possuir de todo e sim por partes, com desamor, abandonos, infidelidades; algo que está perante nós como algo que é preciso conquistar. Algo, não se esqueça, que está diante de nossa liberdade sem forçá-la: a perspectiva cristã.
Durante as aulinhas de religião no colégio eu ouvia, com muita frequência, a expressão 'boa nova' em referência à novidade cristã no mundo. É bem compreensível que um menino de 10 anos (mais interessado em jogar bola ou jogar giz nos outros) não veja muito de especificamente 'bom' nisso, mas que ele também não veja nada de 'novo' é prova de como o cristianismo ainda é parte integrante de mentalidades que se querem secularizadas. O que era radicalmente novo é hoje habitual e óbvio, universal.

Assim como Hayek dizia que os confortos gerados pelo liberalismo minaram sua própria existência (a partir de questionamentos que só se tornaram possíveis graças, é claro, ao liberalismo), assim também o homem moderno aprendeu a absorver uma herança cristã no momento mesmo em que se esforça para difamá-la e para declarar-se completamente independente dela. Seria ocioso repetir aqui as evidências da presença religiosa em comunidades supostamente secularizadas; são resquícios que teimam em não desaparecer, ainda que já tenham perdido boa parte de seu significado original. Se não fosse de nosso feitio achar que toda a história da humanidade representa uma via ascendente cuja culminância é nosso próprio umbigo, essa heróica sobrevivência do ideário religioso significaria algo mais que a simples inércia dos velhos hábitos.

Falando do cristianismo em particular, é bem-vindo o esforço do filósofo espanhol Julián Marías (1914-2005) no sentido de refrescar nossas memórias quanto à perspectiva cristã tradicional. Nesse livrinho, A Perspectiva Cristã, um de seus últimos (favor evitar a edição brasileira), Marías se concentra no que há de radicalmente novo, revolucionário mesmo, na doutrina cristã.

Nada do que há de originalíssimo no cristianismo nos aparecerá como tal se não estivermos dispostos a imaginar o mundo sem sua contribuição, o que já é tarefa bem difícil desde há muito. Sabemos que não se encontra no monoteísmo essa grande novidade; o judaísmo está aí para provar que a idéia de um criador único não era nova. Mas, quanto à 'substância' desse criador:
Desde o Gênese já era Criador, mas agora não só não haverá pluralidade de nomes como também "Deus" será um nome próprio, um nome pessoal. Além de Criador, é Pai, Pai comum de todos os homens; a unicidade de Deus e sua paternidade são correspondentes à fraternidade de todos os homens por serem filhos de Deus, não apenas "semelhantes", mas irmãos, sem distinção nem privilégio.
Como sói acontecer, a princípio pode parecer que não há nada de muito novo aqui. A necessidade e o 'bem' inerente a uma convivência harmoniosa adviria da circunstância inarredável de sermos 'semelhantes', não havendo, portanto, a necessidade de chegarmos ao ponto de nos enxergar como 'irmãos'. Ocorre que por mais que se queira mostrar nossa semelhança do ponto de visto biológico (ou qualquer outro), o fato é que são as nossas diferenças as que sempre ficam em primeiro plano. Nossa história é um imenso catálogo de conflitos que não puderam ser evitados a despeito de nossa tão alardeada similitude. A noção que hoje temos de respeito à vida alheia, por mais trivial e of course que possa parecer, não tem outra origem senão a constatação de que somos algo mais que seres com grande semelhança física e, de quando em vez, comportamental.

Tudo isso é de fato muito novo, e radical. Tão mais radical porque o status de irmão, de criatura do mesmo criador, é conferido a todo e qualquer ser humano, não apenas aos 'fiéis'. E não haveria como ser diferente, já que qualquer desvio representaria nada menos que um supremo desrespeito à diversidade que, se estamos de acordo com a perspectiva cristã, tem uma origem única, a nossa mesma origem. Chegamos à primeira grande consequência prática da novidade cristã: a vida humana passa a ser sagrada.

É bastante comum ouvirmos falar da intransigência da Igreja ou de qualquer posicionamento que se diga religioso. Chega-se ao ponto de estabelecer uma relação de sinonímia entre religião e inflexibilidade, intransigência, negacionismo ou anacronismo. Se é verdade que isso se verifica aqui e ali, seria o caso de apelar para a autoridade do cristianismo como aliado, visto que nada poderia ter o direito de abominar esse estado de coisas mais que o cristianismo:
A idéia de uma perfeição inexequível, mas ao mesmo tempo "proposta" como alvo e meta desejáveis, a esperança de um conhecimento pleno de Deus, prometido na outra vida mas mencionado como algo que se pode e deve tentar - credo ut intelligam, fides quaerens intellectum -, é uma atitude que mobiliza o homem para buscar, tantar, indagar, ensaiar. A sucessão incessante de estilos artísticos, formas literárias, sistemas intelectuais, formas políticas, pode ser interpretada como uma das consequências da perspectiva cristã.
O grifo acima - buscar, tentar, indagar, ensaiar - é meu e deixa claro a perfeita concordância (mais, a rigorosa indissolubilidade) entre ciência e religião. Esse princípio também destrói de vez qualquer das alegações propostas no parágrafo anterior; muito pelo contrário, não nos deve admirar o fato de a ciência, as artes e as instituições políticas terem se desenvolvido com vigor especial nas regiões afetadas direta ou indiretamente pelo cristianismo. Qualquer restrição a essa liberdade criativa, ainda que perpetrada sob os auspícios de um discurso cristão (como não deixou de ocorrer), é nada menos uma infidelidade à perspectiva original. Chegamos, então, à segunda grande consequência prática do cristianismo: a necessidade de (e a liberdade para) um processo de aperfeiçoamento - ou de evolução, se quiserem - que não termina nunca.

A própria condição de criatura (com as palavras de Marías: uma empresa, um processo em andamento, um ser imperfeito no sentido etimológico da palavra) conferida ao ser humano já pressupõe a necessidade da melhoria e do refinamento, mudanças cuja plenitude será alcançada num outro mundo.

Resta falar da terceira e última grande contribuição prática do cristianismo: a noção de responsabilidade pessoal. Isso é consequência direta da idéia de um Deus pessoal e infinito: sendo pessoal e infinito, o amor divino chega a nós pessoalmente, instâncias individuais ainda que imperfeitas, e não a um grupo amorfo qualquer. É comum de nossa parte querer conferir um caráter puramente moral à noção de pecado, mas ele corresponde, dentro da perspectiva cristã, a uma quebra de acordo, acordo firmado entre seres inteligentes. É bem verdade que à medida que se vai descartando a idéia do pecado, introduz-se uma atenuação da consciência moral: imaginar que essa consciência possa ter origem em conceitos tardios e largamente manipuláveis como 'liberdade', 'democracia', 'igualdade' é, quando pouco, excessivamente problemático.

Caráter sacro da vida humana; liberdade para explorar e melhorar; responsabilidade pessoal. Isso tudo soa familiar? Somos todos cristãos, ateus e agnósticos inclusive.

terça-feira, 3 de julho de 2007

The Hollow Men (1925)

A epígrafe desse poema, mui oportunamente, é retirada do Heart of Darkness do Conrad. É como o moleque informa aos demais que Mr. Kurtz finalmente morreu. Sem muito barulho.

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Mistah Kurtz—he dead

A penny for the Old Guy

I

We are the hollow men
We are the stuffed men
Leaning together
Headpiece filled with straw. Alas!
Our dried voices, when
We whisper together
Are quiet and meaningless
As wind in dry grass
Or rats' feet over broken glass
In our dry cellar

Shape without form, shade without colour,
Paralysed force, gesture without motion;

Those who have crossed
With direct eyes, to death's other Kingdom
Remember us -- if at all -- not as lost
Violent souls, but only
As the hollow men
The stuffed men.

II

Eyes I dare not meet in dreams
In death's dream kingdom
These do not appear:
There, the eyes are
Sunlight on a broken column
There, is a tree swinging
And voices are
In the wind's singing
More distant and more solemn
Than a fading star.

Let me be no nearer
In death's dream kingdom
Let me also wear
Such deliberate disguises
Rat's coat, crowskin, crossed staves
In a field
Behaving as the wind behaves
No nearer --

Not that final meeting
In the twilight kingdom

III

This is the dead land
This is cactus land
Here the stone images
Are raised, here they receive
The supplication of a dead man's hand
Under the twinkle of a fading star.

Is it like this
In death's other kingdom
Waking alone
At the hour when we are
Trembling with tenderness
Lips that would kiss
Form prayers to broken stone.

IV

The eyes are not here
There are no eyes here
In this valley of dying stars
In this hollow valley
This broken jaw of our lost kingdoms

In this last of meeting places
We grope together
And avoid speech
Gathered on this beach of the tumid river

Sightless, unless
The eyes reappear
As the perpetual star
Multifoliate rose
Of death's twilight kingdom
The hope only
Of empty men.

V

Here we go round the prickly pear
Prickly pear prickly pear
Here we go round the prickly pear
At five o'clock in the morning.

Between the idea
And the reality
Between the motion
And the act
Falls the Shadow

For Thine is the Kingdom

Between the conception
And the creation
Between the emotion
And the response
Falls the Shadow

Life is very long

Between the desire
And the spasm
Between the potency
And the existence
Between the essence
And the descent
Falls the Shadow
For Thine is the Kingdom

For Thine is
Life is
For Thine is the

This is the way the world ends
This is the way the world ends
This is the way the world ends
Not with a bang but a whimper.

T. S. Eliot (1888-1965)

domingo, 24 de junho de 2007

Amostras

Esqueci de colocar algumas amostras do trabalho de nosso moderno geômetra:

Reparem que no segundo desenho (segunda linha, à esquerda) não há escadas dobradas; aquilo é uma cerca. No que vem logo abaixo dele a cadeira está numa perspectiva completamente diferente da da mesa. O boneco do último está certamente flutuando.

sexta-feira, 22 de junho de 2007

Kafka e o Moderno Geômetra

O maior desserviço que se pode fazer a uma criança é dar-lhe um livro do Kafka. Lá nada faz sentido. Tudo bem que cachorros falem ou que objetos inanimados tenham vontade própria; as crianças estão todas muito bem acostumadas a esse tipo de coisa. O problema é que, em Kafka, os cachorros não falam como esperávamos que falassem. E isso é desconcertante.

Esse desconcerto é quase sempre o responsável pelo fascínio que a primeira leitura de Kafka exerce sobre nós. Não sabemos ao certo do que se trata, mas a identificação é imediata. É como se ele fingisse conhecer uma verdade que desde há muito procuramos. A constatação de que essa é uma verdade também nossa justifica a terminologia tão cara aos críticos: livro moderno, autor moderno.

É realmente moderno o mundo de Kafka. Estranho que seja moderno ou atual, já que, a princípio, parece primar pela absurdidade: pra começar, nele o tempo está sempre nublado. Já perguntei isso a umas três pessoas e todas parecem concordar que o sol atrapalharia o andamento de qualquer história tipicamente kafkiana. Tudo é difuso, nebuloso; a calçada está sempre coberta de neve, a neblina impede que se veja o contorno das coisas com precisão. Características físicas são de todos prescindíveis: o máximo que sabemos de Frieda é que é magra e gasta; tão pouco ou menos sabemos de Josef K., protagonista de O Castelo, e de K., protagonista de O Processo. As cidades não têm nome. Quando Frieda sugere a idéia de fugir para Portugal ou Espanha, causa estranhamento o fato de esses dois lugares ainda existirem.

Outra particularidade é o não saber a quem recorrer. Num conto de fadas, há sempre a possibilidade de temer a bruxa ou a rainha malvada. Podemos ser acometidos por uma maldição terrível, mas temos uma idéia de quem foi o responsável, assim como temos uma excelente idéia de quem poderia nos ajudar. Em Kafka, está-se sempre sozinho. No meio de uma complicação judicial, a probabilidade de K. vir a ser auxiliado pelo pintor, ou pelo padre, ou pelo próprio advogado, é sempre a mesma: nenhuma. A existência de regras a que podemos apelar é, para Ortega y Gasset, uma das características básicas de qualquer grupo civilizado. Não vendo necessidade para regra nenhuma, Kafka reduz todos seus personagens à barbárie.

Num estudo sobre o Kafka (Kafka's Afflicted Vision: A Literary-Theological Critique, clicar aqui para ler), George A. Panichas fala da ausência de regras como a ausência de 'centros':
The Castle offers us, above all, a centerless world, in which its inmates are like shadows in the land of death. One critic, Zadie Smith, in an admirable commentary titled in Kafka’s own words found in his diary entry dated March 30, 1913, “The Limited Circle Is Pure,” observes: “... Kafka has no center. Kafka avoided every telos, all termini, purposes, meaningful endings, and resting spots. ...”
Kafka é o moderno geômetra: aquele que não precisa de centros. Curiosamente, o primeiro capítulo do Imagens e Símbolos, do historiador das religiões Mircea Eliade, chama-se simbolismo do "centro", um simbolismo que se repete com frequência nas mais diversas religiões. A mentalidade religiosa sente a necessidade de conferir um aspecto privilegiado àquilo que lhe é mais caro: numa tentativa de separar claramente o sagrado do profano, faz de sua casa, ou do símbolo maior de sua religião, o "centro" do mundo. O "centro" é tudo aquilo que realmente importa, é o que de fato existe, e não lhe estranha a possibilidade de haver vários centros para um mesmo mundo. Uma perspectiva mais moderna admite a existência de um centro apenas, mas que estranho seria se ele não existisse! É o que Kafka, moderno e radical, faz: suprime toda e qualquer idéia de centro.

Não é à toa que todos seus personagens estão sempre perdidos; não têm como se orientar. K. perde horas em conversas extenuantes que não levam a nada, quando não o deixam ainda mais confuso. Panichas lembra, com razão, que uma de nossas primeiras reações ao ler O Processo, por exemplo, é de compaixão por K. Sentimos a dificuldade de sua situação e não escondemos nossa simpatia. O que não nos ocorre com tanta frequência é a constatação de que K. merece sua vizinhança: quando não está conformado deixa clara sua incapacidade para transcender o problema. Em verdade, K. não parece ser muito diferente dos agentes que o oprimem; se tivessem de trocar de lugares, é bem provavel que K. aceitasse de bom grado sua nova incumbência.

Não existem saídas ou é apenas K. que não consegue enxergá-las? Poderíamos perguntar o mesmo do próprio Kafka.

quarta-feira, 6 de junho de 2007

The Shield of Achilles (1953)

........She looked over his shoulder
...............For vines and olive trees,
........Marble well-governed cities
...............And ships upon untamed seas,
........But there on the shining metal
...............His hands had put instead
........An artificial wilderness
...............And a sky like lead.

A plain without a feature, bare and brown,
.....No blade of grass, no sign of neighborhood,
Nothing to eat and nowhere to sit down,
.....Yet, congregated on its blankness, stood
.....An unintelligible multitude,
A million eyes, a million boots in line,
Without expression, waiting for a sign.

Out of the air a voice without a face
.....Proved by statistics that some cause was just
In tones as dry and level as the place:
.....No one was cheered and nothing was discussed;
.....Column by column in a cloud of dust
They marched away enduring a belief
Whose logic brought them, somewhere else, to grief.

........She looked over his shoulder
...............For ritual pieties,
........White flower-garlanded heifers,
...............Libation and sacrifice,
........But there on the shining metal
...............Where the altar should have been,
........She saw by his flickering forge-light
...............Quite another scene.

Barbed wire enclosed an arbitrary spot
.....Where bored officials lounged (one cracked a joke)
And sentries sweated for the day was hot:
.....A crowd of ordinary decent folk
.....Watched from without and neither moved nor spoke
As three pale figures were led forth and bound
To three posts driven upright in the ground.

The mass and majesty of this world, all
.....That carries weight and always weighs the same
Lay in the hands of others; they were small
.....And could not hope for help and no help came:
.....What their foes like to do was done, their shame
Was all the worst could wish; they lost their pride
And died as men before their bodies died.

........She looked over his shoulder
...............For athletes at their games,
........Men and women in a dance
...............Moving their sweet limbs
........Quick, quick, to music,
...............But there on the shining shield
........His hands had set no dancing-floor
...............But a weed-choked field.

A ragged urchin, aimless and alone,
.....Loitered about that vacancy; a bird
Flew up to safety from his well-aimed stone:
.....That girls are raped, that two boys knife a third,
.....Were axioms to him, who'd never heard
Of any world where promises were kept,
Or one could weep because another wept.

........The thin-lipped armorer,
...............Hephaestos, hobbled away,
........Thetis of the shining breasts
...............Cried out in dismay
........At what the god had wrought
...............To please her son, the strong
........Iron-hearted man-slaying Achilles
...............Who would not live long.

W. H. Auden (1907-1973)