sábado, 9 de janeiro de 2010

Há metafísica na matéria

Ideas have consequences, do norte-americano Richard M. Weaver, é um daqueles livros que, se fossem lidos e meditados por adolescentes entrando na faculdade mundo afora, melhorariam radicalmente a humanidade. Juntamente com o La rebelión de las masas do Ortega y Gasset e o Orthodoxy do Chesterton, ele deveria estar na cabeceira de todos os jovens. Assim como os outros dois, ele tem a capacidade, especialmente admirada por espíritos apressados, de concentrar em poucas páginas uma quantidade atordoante de comentários revolucionários (ainda que não necessariamente originais). Aproprio-me dos termos 'radical' e 'revolucionário' com gosto: por mais que o leitor discorde do autor, sai com a inarredável impressão de ter visitado terrenos inauditos.

Veja-se como exemplo disso o que Weaver tem a dizer em seu sétimo capítulo, chamado the last metaphysical right. Depois de expor em seis capítulos o mundo que ele acredita decadente, chega a hora de sugerir um plano de ação. A que princípio devemos apelar num mundo que aprendeu a viver sem metafísica? Ao último princípio metafísico que nos resta: o da propriedade privada. Aqui há duas observações: (a) o respeito à propriedade privada é dito metafísico porque funciona independentemente de, ou até a despeito de, sua utilidade social, não se reduzindo a mero utilitarismo e (b) a longevidade desse princípio é nada menos que impressionante quando se considera a força que já tiveram alguns de seus adversários. Hoje, se queremos chegar a uma unanimidade numa democracia, o mais seguro a fazer é apelar ao direito à propriedade privada, talvez até mais que ao direito à vida(*).

Nas mãos das criaturas descritas nos seis primeiros capítulos do livro, o respeito pela propriedade privada pode se transformar, é certo, em mais um artifício para esmagar o pouco de metafísica que resta no mundo. Sob orientação mais saudável a coisa muda de figura por vários motivos:

- A propriedade privada está associada à dignidade pessoal porque o que possuimos também nos define. Por mais que seja danoso lembrar-se disso com muita frequência, minhas roupas e objetos pessoais também fazem parte do que se entende por Igor;

- O exercício da virtude só é possível num ambiente que encoraja a escolha sob responsabilidade individual; ninguem pode ser prudente ou generoso em relação a bens materiais sem haver antes uma relação direta de propriedade. Weaver observa que costumava ser motivo de orgulho para uma família dar o nome do clã ao produto por eles produzido; há aí um compromisso de qualidade e de responsabilidade que é pulverizado assim que as corporações se tornam impessoais ou, como a própria expressão em português traduz bem, 'sociedades anônimas'(**).

- O princípio da propriedade privada é tão dogmático quanto qualquer dogma religioso. A maneira mais certa de encerrar uma discussão sobre o que fazer com meus pertences é simplesmente lembrar que eles são meus pertences. Quem se arriscaria a dizer de onde vem tanta autoridade?

Por mais doloroso que seja admiti-lo, partimos de princípios dogmáticos o tempo todo. Seria impossível viver de outra maneira, assim como seria impossível ao matemático provar que a soma dos ângulos internos de um triângulo é 180 graus sem aceitar o quinto axioma de Euclides. Dizem que o esquerdista é quem leva adiante um raciocínio mesmo sem acreditar em seus pressupostos; eu diria que quem faz isso é maluco.

(*) Quando eu era criança, apenas duas coisas me afligiam no mundo das idéias - a primeira lei de Newton (princípio da inércia) e o direito que temos de dispor de nossos bens mesmo depois de mortos, isto é, o direito de deixar um testamento. No primeiro caso, vemos a fácil aceitação, por parte de uma população altamente empirista, de um princípio que pode ser tudo, menos empírico; no segundo, vemos o direito a dispor de propriedades persistir mesmo depois de suspenso o direito à vida.

(**) Crises financeiras como a que acabou de abater o mundo só poderiam existir num contexto de sociedades (e de indivíduos) anônimos. Longe de representar o princípio da propriedade privada na prática, a especulação financeira subtrai o elemento mais importante da aliança: o proprietário.

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