Segundo rezam os manuais de literatura, A Rosa do Povo, publicado, se não falha a memória, em 1945, é o livro de Carlos Drummond de Andrade mais explicitamente dedicado aos problemas sociais que abalavam o mundo à época. Não sem boa dose de curiosidade mórbida, resolvi ler o livro. Há muitos daqueles poemas ligeiros, engraçadinhos, que nos dizem pouco apesar do estardalhaço que faziam, e há também poemas mais cuidadosamente trabalhados, escritos por um Drummond que deveria ter sido mas não foi (meus preferidos são os narrativos, principalmente O Caso do Vestido e O Elefante). E, como todos já temíamos, encontramos algumas loas aos soviéticos, das quais escolhi a mais constrangedora pra postar aqui. Não conheço a biografia dele pra saber se chegou a se retratar em algum momento (o certo é que teve tempo mais que suficiente), mas isso é indiferente agora. O mal do artista brasileiro é errar até quando acerta.
Stalingrado...Depois de Madri e de Londres, ainda há grandes cidades!O mundo não acabou, pois que entre as ruínasoutros homens surgem, a face negra de pó e de pólvora,e o hálito selvagem da liberdadedilata os seus peitos, Stalingrado,seus peitos que estalam e caem,enquanto outros, vingadores, se elevam.A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais.Os telegramas de Moscou repetem Homero.Mas Homero é velho. Os telegramas cantam um mundo novoque nós, na escuridão, ignorávamos.Fomos encontrá-lo em ti, cidade destruída,na paz de tuas ruas mortas mas não conformadas,no teu arquejo de vida mais forte que o estouro das bombas,na tua fria vontade de resistir.Saber que resistes.Que enquanto dormimos, comemos e trabalhamos, resistes.Que quando abrimos o jornal pela manhã teu nome (em ouro oculto) estará firme no alto da página.Terá custado milhares de homens, tanques e aviões, mas valeu a pena.Saber que vigias, Stalingrado,sobre nossas cabeças, nossas prevenções e nossos confusos pensamentos distantesdá um enorme alento à alma desesperadae ao coração que duvida.Stalingrado, miserável monte de escombros, entretanto resplandecente!As belas cidades do mundo contemplam-te em pasmo e silêncio.Débeis em face do teu pavoroso poder,mesquinhas no seu esplendor de mármores salvos e rios não profanados,as pobres e prudentes cidades, outrora gloriosas, entregues sem luta,aprendem contigo o gesto de fogo.Também elas podem esperar.Stalingrado, quantas esperanças!Que flores, que cristais e músicas o teu nome nos derrama!Que felicidade brota de tuas casas!De umas apenas resta a escada cheia de corpos;de outras o cano de gás, a torneira, uma bacia de criança.Não há mais livros para ler nem teatros funcionando nem trabalho nas fábricas,todos morreram, estropiaram-se, os últimos defendem pedaços negros de parede,mas a vida em ti é prodigiosa e pulula como insetos ao sol,ó minha louca Stalingrado!A tamanha distância procuro, indago, cheiro destroços sangrentos,apalpo as formas desmanteladas de teu corpo,caminho solitariamente em tuas ruas onde há mãos soltas e relógios partidos,sinto-te como uma criatura humana, e que és tu, Stalingrado, senão isto?Uma criatura que não quer morrer e combate,contra o céu, a água, o metal, a criatura combate,contra milhões de braços e engenhos mecânicos a criatura combate,contra o frio, a fome, a noite, contra a morte a criatura combate,e vence.As cidades podem vencer, Stalingrado!Penso na vitória das cidades, que por enquanto é apenas uma fumaça subindo do Volga.Penso no colar de cidades, que se amarão e se defenderão contra tudo.Em teu chão calcinado onde apodrecem cadáveres,a grande Cidade de amanhã erguerá a sua Ordem.
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